Racionalidade consequencialista e legitimação institucional: TCU diante da complexidade

Bruno Dantas e Frederico Dias

Em “O Direito Dúctil”, Gustavo Zagrebelsky descreve a insuficiência do direito tradicional para lidar com os dilemas de uma sociedade complexa, marcada por instabilidade, pluralidade de valores e certo grau de relativismo. À rigidez da subsunção normativa, impõem-se exigências de flexibilidade, sensibilidade ao contexto e abertura à prática — exigências que conferem ao direito um caráter eminentemente adaptativo.

Essa concepção se ancora na ideia de ductibilidade: a maleabilidade controlada do direito, capaz de ajustar-se à singularidade dos casos sem abdicar de sua estrutura. Não se trata de renunciar à normatividade, mas de compreendê-la como fenômeno em permanente tensão com a realidade que pretende ordenar [1].

Zagrebelsky defende, nesse cenário, um modo de pensar possibilista, em diálogo com Peter Häberle, que propõe uma hermenêutica constitucional aberta à multiplicidade de sentidos e à deliberação plural. Trata-se de reconhecer que, diante da ausência de respostas jurídicas evidentes, impõe-se ao intérprete a construção ponderada de soluções possíveis, mediante análise de alternativas e valores em conflito [2] [3].

É nesse horizonte que se insere a teoria dos princípios de Robert Alexy. Princípios, diferentemente de regras, são mandados de otimização: normas cuja aplicação depende da máxima realização possível dentro das restrições fáticas e jurídicas do caso concreto [4]. Exigem ponderação, contextualização e fundamentação racional.

Esse deslocamento de paradigma aproxima-se da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann [5]. Para que o direito continue exercendo sua função de redução da complexidade social, ele precisa ajustar seus códigos operacionais às novas exigências do ambiente. Pragmatismo e consequencialismo, nesse quadro, surgem como formas de acoplamento funcional entre o subsistema jurídico e os demais sistemas sociais, como o econômico e o político [6].

O TCU e a aplicação do direito em tempos complexos
A atuação do Tribunal de Contas da União tem refletido esse movimento de abertura à complexidade. Responsável pelo controle externo da Administração Pública, o TCU é cada vez mais instado a decidir em contextos marcados por incerteza, assimetria de informações, urgência social e conflitos regulatórios de alta densidade.

Em 2017, por exemplo, ao analisar os Termos de Ajustamento de Conduta firmados pela Anatel, o Tribunal reconheceu a legitimidade do instrumento como meio de aprimorar a qualidade dos serviços de telecomunicações, flexibilizando exigências procedimentais em favor da efetividade regulatória [7].

Em 2022, ao deliberar sobre a transferência de controle acionário da Concessionária Rota do Oeste, o TCU optou por valorizar os resultados econômicos e sociais do acordo em detrimento da rigidez contratual, acolhendo a solução negociada como mais vantajosa que a relicitação ou a caducidade da concessão [8].

Mais recentemente, em 2025, o julgamento sobre a regularidade do Programa Pé-de-Meia evidenciou a disposição do Tribunal para compatibilizar os princípios da responsabilidade fiscal com a continuidade de políticas públicas de alto impacto social. Ao suspender medida cautelar que poderia inviabilizar o programa, o TCU reconheceu que a correção orçamentária poderia ser construída sem interromper os benefícios destinados a jovens de baixa renda [9].

O impacto transformador do princípio da eficiência
Esse novo padrão decisório não decorre apenas de uma escolha pragmática. Ele está ancorado em transformações estruturais do próprio ordenamento jurídico. A Emenda Constitucional nº 19/1998, ao incluir expressamente o princípio da eficiência no caput do art. 37 da Constituição, impôs nova racionalidade à Administração Pública.

Se antes o controle se limitava à legalidade e à moralidade, agora exige-se também a aferição de resultados. O controle passa a ser não apenas garantidor da norma, mas também promotor de soluções eficientes.

A teoria de Alexy oferece base conceitual sólida para compreender essa mudança. O princípio da eficiência opera como mandado de otimização, exigindo juízos de ponderação entre alternativas viáveis e busca pela melhor realização possível do interesse público. Isso implica superar modelos binários e adotar uma racionalidade proporcional, contextual e orientada a finalidades concretas.

Instrumentos normativos e respostas institucionais
Essa inflexão consequencialista encontrou eco no plano legislativo. Desde 2010, as Leis de Diretrizes Orçamentárias passaram a exigir a consideração dos impactos sociais, econômicos e ambientais da paralisação de obras com indícios de irregularidades [10].

A Lindb, reformada em 2018, reforçou esse dever ao prever expressamente que decisões administrativas e de controle devem considerar suas consequências práticas [11]. A nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) consolidou esse padrão, exigindo avaliação de impactos antes da decretação de nulidades contratuais [12].

No plano institucional, o TCU incorporou esse novo ethos em sua Resolução 315/2020, que orienta os julgamentos a observar critérios como custo-benefício, viabilidade prática, discricionariedade administrativa e participação dos afetados.

Durante a pandemia, o Programa Coopera aprofundou essa postura. Com foco em orientação, diálogo e agilidade, o Tribunal buscou garantir segurança jurídica aos gestores diante de um cenário inédito de urgência e escassez [13].

A consolidação desse modelo ocorreu com a Instrução Normativa 91/2022, do TCU, que procedimentalizou as soluções consensuais de controvérsias relevantes, conferindo previsibilidade e transparência às decisões construídas em diálogo com os jurisdicionados.

Contratos incompletos, complexidade e acoplamento funcional
Muitos dos casos enfrentados pelo TCU envolvem contratos de infraestrutura — concessões, parcerias e delegações — cuja estrutura revela, por natureza, um elevado grau de incompletude.

A teoria dos contratos incompletos, formulada por Oliver Hart, Sanford Grossman e John Moore, parte da constatação de que é inviável prever exaustivamente todas as contingências futuras. Os contratos, por isso, deixam espaços indeterminados que deverão ser preenchidos por renegociação, adaptação institucional ou decisões discricionárias ex post [14].

Em cenários de choques exógenos, como crises econômicas, rupturas regulatórias ou eventos imprevisíveis, a execução literal do contrato revela-se disfuncional. É nesse contexto que o controle externo ganha relevo não apenas como fiscal da legalidade, mas como instância de reequilíbrio institucional.

A teoria dos sistemas de Luhmann reforça essa leitura. O direito só cumpre sua função de redução da complexidade se for capaz de absorver as dinâmicas dos demais sistemas sociais e transformá-las em decisões juridicamente aceitáveis. Pragmatismo e consequencialismo, assim compreendidos, são estratégias de adaptação: formas evolutivas de manter o sistema jurídico responsivo e funcional em face da crescente contingência do ambiente [15].

Considerações finais
A adoção de uma racionalidade consequencialista pelo TCU não significa renúncia à legalidade, mas expansão de sua densidade. O desafio é conjugar a segurança normativa com a responsividade institucional.

Decidir bem, hoje, exige avaliar efeitos, ponderar alternativas e justificar escolhas com base em princípios. Significa construir julgamentos transparentes, racionais e comprometidos com os resultados que produzem — tanto no plano jurídico quanto no plano social.

Como sustentam Alexy, Hart e Luhmann, a legitimidade do direito em sociedades complexas decorre menos da aplicação mecânica de normas e mais da capacidade institucional de enfrentar problemas reais por meio de decisões justificadas, viáveis e juridicamente responsáveis.

O TCU tem demonstrado que é possível fazer isso com rigor, técnica e compromisso democrático.


[1] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil – Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. Madrid, Editoral Trotta, 2011. p. 146.

[2] Ibid. p. 17.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Interpretação Constitucional e “Pensamento de Possibilidades”. In: COSTA, José Augusto Fontoura; ANDRADE, José Maria Arruda; MATSUO, Alexandra Mery Hansen (Orgs.). Direito: teoria e experiência: estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 1022-1047.

[4] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90-95.

[5] LUHMANN, Niklas. Direito e sociedade. Trad. Daniela Morales e Débora Danowski. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2009. p. 131-145.

[6] O pragmatismo foca na solução eficaz de problemas em contextos específicos, permitindo ao direito adaptar suas respostas para alcançar consequências práticas e desejáveis nos diversos sistemas sociais. O consequencialismo, por sua vez, é uma teoria ética e jurídica que avalia a legitimidade de uma decisão pela análise de seus resultados. Nesse contexto, o acoplamento funcional (ou estrutural) representa um mecanismo de adaptação do sistema jurídico para se conectar e interagir com outros sistemas sociais, mantendo sua capacidade de responder à complexidade social sem perder sua autonomia.

[7] Acórdão 2.121/2017-TCU-Plenário.

[8] Acórdão 2.139/2022-TCU-Plenário.

[9] Acórdão 297/2025-TCU-Plenário.

[10] Lei 12.309/2010, art. 95 e Lei 13.080/2015, art. 113, § 5º.

[11] Lei 13.655/2018.

[12] Lei 14.133/2021, arts. 147 e 148.

[13] https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-lanca-o-coopera-programa-especial-de-atuacao-no-enfrentamento-a-crise-da-covid-19

[14] HART, Oliver; GROSSMAN, Sanford; MOORE, John. The Costs and Benefits of Ownership: A Theory of Vertical and Lateral Integration. Journal of Political Economy, v. 94, n. 4, 1986, p. 691-719.

[15] LUHMANN, Niklas. Direito e sociedade. Trad. Daniela Morales e Débora Danowski. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2009. p. 131-145.

Bruno Dantas é ministro e ex-presidente do TCU

Frederico Dias é auditor federal de Controle Externo