Tarifar sem tributar: o dilema do RPPS que não assume seu papel de gestor de recursos de terceiros

É um trocadilho, já adianto. “Tarifar”, em países de língua inglesa, é um dos termos para o que “tributar” é no Brasil. Por aqui, essa expressão só é empregada em outros contextos, tarifa da passagem aérea, de telefonia, etc. O “tarifar” do estrangeiro, em seu sentido mais próximo aqui no Brasil, seria, portanto, “tributar”.

Mas há um outro sentido para a expressão “tarifar”. É um sentido jurídico-processual: tarifa probatória. “Tarifar a prova” é uma técnica utilizada pontualmente em nossa legislação, por meio da qual as evidências são valoradas hierarquicamente de acordo com critérios preestabelecidos em norma. Por exemplo, o exame do corpo de delito vale mais do que a confissão (art. 158 CPP) e a fotografia de um documento vale menos do que a sua autenticação (art. 232, p.ú. CPP).

Então é assim: vou separar a proposta do título em duas contribuições. Quanto aos ativos garantidores dos Regimes Próprios de Previdência Social sugiro que: (i) devemos passar a isentá-los, pois atualmente são pesada e incompreensivelmente tributados, quebrando a isonomia; e (ii) devemos passar a “tarifá-los”, pois é praxe que sejam tomados pelo seu simples valor de face, uma ingênua irresponsabilidade.

Quanto ao PRIMEIRO, desde o conflito de competência 136984/SP (STJ Min. Rel. Néfi Cordeiro d.j. 16.12.14), gestores de RPPSs podem ser acusados dos ilícitos próprios de Instituições Financeiras. Seriam, portanto e para esses fins, gestores de recursos de terceiros, pessoas em que se deposita fidúcia pública. Apesar de tal reconhecimento, não houve extensão – o que seria de se esperar – ao quanto mais se entenderia inerente à captação da poupança popular e à gestão de recursos de terceiros – que é o que RPPSs fazem!

Quero dizer que recursos de contas de depósitos, de planos de capitalização, de cadernetas de poupança, dos PGBLs, dos VGBLs, dos fundos de pensão, dos FAPIs, enfim, de todos esses muitos mecanismos de poupança não são tributados nas pessoas jurídicas justamente por não serem recursos dessas entidades custodiantes, mas das pessoas físicas que a elas confiam as suas economias. A ninguém ocorreria aplicar tributos cumulativos – tais como o PASEP – a recursos que em verdade nem mesmo são das Instituições, mas dos poupadores.

É um contrassenso, portanto, que os RPPSs recolham PASEP pela maior alíquota e pela maior base de cálculo, toda vez que a receita pública for reconhecida. Parece urgente que se declare a imunidade desses ativos garantidores, bem como de todo seu carregamento: contribuições laborais, patronais, dividendos, rendas, aluguéis, rateios e aportes.

Quanto ao SEGUNDO, há quem conclua que todo o ativo deve ser contabilizado pela expressão que juridicamente apresentar – o valor nominal. Não sei de onde vem essa conclusão, não é usual na contabilidade empresarial. Considere, por exemplo, os precatórios judiciais. Muitos os conhecem e há entes em que o montante a tal título supera a receita de um ano inteiro de arrecadação – são impagáveis.

Está lá escrito que o valor do precatório X é de Y reais e não há nada mais jurídico que isso. Trata-se da regular execução de uma pessoa jurídica insuscetível de falência, integralmente subordinada ao direito posto, decorrente de reconhecimento judicial da obrigação de pagar, regularmente inscrita no orçamento público – por si só uma lei. Se o RPPS tivesse, a favor de si, precatórios, lançaria por esse valor de face, considerando, além do mais, que receberia tais recursos durante a execução orçamentária a que se referem?

A maioria das pessoas sabe que tem precatório que não vale (quase) nada. Nunca houve sã pessoa que rejeitasse uma boa proposta de receber menos, desde que em dinheiro.

O que está na face, portanto, nem sempre vale, e isso no âmbito público também. A norma brasileira de contabilidade no setor público (NBC TSP ESTRUTURA CONCEITUAL) estabelece uma série de bases diferentes para mensuração dos ativos, incluindo valor de mercado, custo de substituição e preço líquido de venda (7.24-7.57), tudo em claros paralelos com a contabilidade privada, com a qual paulatinamente converge.

Se desejamos que o RPPS desempenhe mais assumidamente seu papel de Instituição Financeira, entretanto, talvez devamos derrogar o PCASP para recorrer diretamente à prática bancária, negócio em que a competência central, por vezes, é descrita como bem avaliar o risco.

O chamado “COSIF” (primo rico do PCASP) impede que nos balanços das IFs proliferem esqueletos. Trata-se das regras prudenciais de Basiléia introduzidas há décadas e que, dizem, foram em parte precipitadas pela crise da dívida latino-americana dos anos 80 (https://www.bis.org/bcbs/history.htm).

A regra principal é de tarifação dos ativos pelo risco que exibem. Como exemplo: por ocasião da apuração do balancete da IF, se o atraso no pagamento de principal ou encargos de uma operação de crédito exceder 180 dias, o nível de risco a ser atribuído é “H” e a provisionamento deve ser de 100%, ou seja, o direito deve ser “marcado a zero” (resolução CMN 2682 arts. 4º, I, “g” c/c 6º, VIII). Atualmente evolui-se muito, sem por isso perder o foco no risco conforme cientificamente determinado como condicionador do valor a reconhecer (veja, por exemplo, resolução CMN 4955).

Fico imaginando se alguém aplicasse a mesma regra em um RPPS: em havendo atraso superior a seis meses no plano de parcelamento, ele deve ser considerado zero para fins atuariais…

Alerte-se: isso não significa renunciar à pretensão de ver satisfeito o crédito em sua inteireza, definitivamente não. “Marcar a zero” não significa perdoar, aliás não há notícias de que bancos vicejem de caridade. Marcar a zero significa simplesmente melhor comunicar ao consumidor da informação contábil – o stakeholder – que daquele mato, não sai cachorro. É medida de clareza e de transparência, não de estratégia de cobrança.

Talvez o que se deseje com essa marcação nominal seja simplesmente evitar o desconforto de conviver com a conclusão de que o Regime não é sustentável. Talvez se imagine que, uma vez plenamente conscientes da real condição de sua previdência, o ente patrocinador ou o legislativo local recorreriam a medidas irracionais e desarrazoada: uma clara visão infantilizada dos controladores.

Em uma democracia não se tutela o povo, sol de onde emana todo o poder. Ele deve dispor da informação mais fidedigna possível, a fim de que possa bem aquilatar as medidas e os esforços cabíveis e necessários. Contra eventuais crises de desinformação, a melhor solução é prestar ainda mais informações, de melhor qualidade, mais claras, mais rápidas e inteligíveis, a fim de que as melhores condutas se façam claras.

Tributação confiscatória e avaliação simplista dos ativos não são expedientes consentâneos nem com previdência social, nem com democracia.

Alexandre Sarquis – Conselheiro substituto do TCE-SP