2020: tempos e palavras
Valdecir Pascoal
Janeiro é propício a retrospectivas e reflexões sobre o porvir. Seu nome é homenagem a Jano, o deus dos inícios e das mudanças, da mitologia romana, simbolizado por uma cabeça de 2 faces, uma olhando para trás (passado) e outra, para frente (futuro). Na Grécia, Jano estaria relacionado a Cronos, o deus do tempo-quantidade, contado em dias, meses, anos.
É possível um olhar cronológico sobre 2020, mas a dimensão do impacto trazido pela pandemia da Covid-19, ainda longe do final, recomenda enxergá-lo numa perspectiva mais ampla. Esse ano só acabará com a imunização plena dos cidadãos por meio da vacinação. No Brasil, é provável que 2020 – ano bissexto, que já havia nos “brindado” com um dia a mais – acabe engolindo 2021, alçando-nos direto a 2022.
A despeito da relativização do calendário, valho-me da velha tradição de listar palavras que marcaram os últimos dias. O espaço me permite duas.
IMPREVIDÊNCIA – A falta de planejamento ocorreu em escala global. Apesar de todos os avanços da tecnologia e da ciência, os governos falharam ao não se prepararem para algo que só não fora previsto por videntes e quiromantes. Epidemiologistas já prenunciavam o risco da hecatombe sanitária. Entre nós, além da imprevidência crônica, a falta de coordenação central e de planejamento se alastraram às ações nacionais de combate ao vírus. A demora da vacina, a falta de suprimentos, a defesa de alquimias e a postura negacionista em relação às medidas profiláticas são apenas uma amostra da incúria que prolonga a tragédia, custa vidas e retarda a retomada da economia.
DESIGUALDADE – A desigualdade é a raiz dos maiores problemas nacionais. A pandemia agrava esse fosso em todas as suas dimensões: de classe, de raça, de gênero e regional. O distanciamento não é só físico, ele se manifesta também na exacerbação do racismo, do feminicídio e do darwinismo digital no acesso à educação. Com o fim do auxílio emergencial, a pobreza alcançará patamar inédito. Ouçamos o recado de Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Renda Mínima, reforço do SUS, educação de qualidade e um estado mais probo e eficiente são medidas para alargar as margens do rio da dignidade e da cidadania.
Volto ao tempo, agora na perspectiva Kairós, que, na mitologia grega, traduz-se em oportunidade. É o mesmo tempo-qualidade do Eclesiastes. É tempo de aprender com o passado e produzir as vacinas e os remédios fundamentais que nos garantam a saúde, a ternura do abraço e um maior bem-estar social. Estamos à altura?
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE