Naluh M. L. Gouveia
Mais do que comemoração, as referências ao mês de março como “mês das mulheres” deve servir para uma reflexão mais aprofundada sobre a distância abismal entre direitos humanos, direitos fundamentais das mulheres e sua factualidade. A proteção da mulher ganhou maior visibilidade internacional quando o direito humano à igualdade de gênero foi codificado em instrumentos legais internacionais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, a Declaração sobre Eliminação da Violência contra a Mulher, todas no âmbito das Organizações das Nações Unidas – ONU, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Organização dos Estados Americanos – OEA, esta se constituindo um marco no sistema especial de proteção jurídica da mulher enquanto sujeito de direitos humanos.
Os Estados nacionais, como o Brasil, ao ratificarem a Convenção, assumem o compromisso de adotar de forma imediata políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, inclusive alterando os seus sistemas jurídicos, sejam normas penais, civis, administrativas e outras medidas necessárias. A Constituição Federal (1988), em diferentes artigos, dispõe sobre os direitos fundamentais à vida, à integridade física, psicológica, à saúde e bem – estar, além do princípio do direito à dignidade humana e a Lei nº 11.340/2006, conhecida como “Lei Maria da Penha”, inaugurou um novo instrumento do Estado brasileiro no combate à violência doméstica e intrafamiliar contra a mulher, em situação de ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Tal avanço legal possibilitou a substituição da concepção de violência doméstica e familiar de “crimes de menor potencial ofensivo” para violação de direitos humanos das mulheres, a especialização da proteção e defesa das vítimas prevendo a implementação de juizados e delegacias de atendimento às mulheres, a integração de ações de políticas sociais, dos órgãos de segurança e de acesso à justiça, importância de medidas preventivas por meio de campanhas educativas, disseminação do conhecimento sobre as leis e instrumentos de proteção dos direitos humanos das mulheres.
No nosso estado do Acre, os dados estatísticos nos posicionam sempre no topo dos estados com maiores índices ou taxas de violência contra a mulher, inclusive da forma mais grave de violência contra a mulher por razão de gênero: o feminicídio, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
De acordo com o Observatório de Violência de Gênero (OBSGênero) do Ministério Público do Acre, de janeiro de 2018 a janeiro de 2024, ocorreram 74 vítimas de feminicídio no estado. Deste total, 90% dos fatos se deram no ambiente doméstico ou familiar, 89% das vítimas não estavam amparadas por medidas protetivas e 77% dos crimes foram cometidos por agressor que teve algum tipo de relacionamento íntimo com a vítima.
Os números não retratam a multidimensionalidade do problema, contudo, atrás de cada um deles tem uma vida e uma história de agressão rotineira, em que o ex-companheiro ou o atual companheiro, independente de coabitação, é o principal violentador. Ainda segundo o OBSGênero, em 2022 os municípios de Feijó e Tarauacá tiveram 30% e 10%, respectivamente, do total de casos de feminicídio no estado. E, na série histórica 2018 a 2022, 71% dos crimes ocorreram na residência da vítima, onde deveria ser o local mais seguro para a mulher. De outro lado, a pesquisa amostral do DataSenado nos estados sobre violência contra a mulher, de fevereiro 2024, que entrevistou mulheres acreanas de 16 anos ou mais, demonstrou que 32% já sofreu algum tipo de violência doméstica ou familiar por um homem, 79% conhece pouco ou nada sobre a Lei Maria da Penha e 88% conhece pouco ou nada sobre medidas protetivas.
Os números são reflexos da sociedade nacional e local marcadas histórica e culturalmente pela ideologia do patriarcado, da dominação e exploração masculina que caracterizam as relações homem-mulher, que se apresenta muitas vezes como violência naturalizada e que invade todos os espaços, privados e públicos. O medo de represália, a falta de meios econômicos de sobrevivência, preocupação com a custódia dos filhos, ausência de apoio familiar ou de amigos, e a espera por mudanças de comportamento do agressor são algumas das variáveis mais comuns que fazem com que as vítimas de violência não denunciem ou procurem serviços especializados.
Outro fator muito agravante é a inércia ou abstenção do Estado, que se torna um violador dos direitos fundamentais e humanos da mulher quando não concretiza os meios necessários para efetivar os preceitos constitucionais, quais sejam políticas de Estado com ações estruturadas e sistemáticas para ampliar e qualificar a rede de atendimento especializado para assistência às mulheres vítimas de violência, melhorar a assistência judiciária com diminuição do acúmulo de processos e riscos de prescrição do crime, celeridade na expedição de medidas protetivas, e um conjunto de outras políticas públicas intersetoriais de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher.
Como parte do Estado, ao controle externo cabe aferir se o montante de recursos previstos, a qualidade dos gastos, a prestação dos serviços e os resultados obtidos dessa política pública atendem as necessidades reais, posto que a tragédia não deve se concentrar na vítima e deve ser assumida por todos, inclusive pela sociedade.
Em oposto às primeiras ideias de hierarquização masculina do filósofo helenista Filon de Alexandria, há mais de 2.500 (dois mil e quinhentos) anos, que se inspirou em Platão e Aristóteles, a mulher não tem alma inferior à do homem, o homem não tem superioridade, domínio e divindade em relação à mulher.
Naluh M. L. Gouveia – Conselheira do TCE-AC