Há uma comissão debatendo alterações à Lei de Licitações na Câmara dos Deputados (CELICITA). Isso ocorre apesar do resultado de outra comissão conduzida pelo Senado Federal (CTLICON) e de suas conclusões (PLS 559/2013). Em muitas formas o momento relembra aquele que levou à edição da Lei 8.666/93: nas circunstâncias históricas, na contraposição entre as Câmaras do Congresso (PL 1491/91 vs PLC 59/92), nos grupos de pressão que fazem a interlocução e nas ideias que ventilam.
A aquisição de bens e serviços, que todos os cidadãos conduzem despreocupadamente, é agravada pelo respeito à Licitação quando uma das partes é a Administração Pública. É de todo apropriado que se siga algum tipo de solenidade. Quando um cidadão adquire ou vende algo com o seu próprio dinheiro, acumula os papéis de decisor e de prejudicado pelas desvantagens do negócio.
Com a coisa pública não é assim, e, o que pode ser mais grave, se para cada desvantagem corresponde uma vantagem igual e oposta, parte dela poderia ser canalizada por dissimulados meios de volta ao próprio gestor. A formalidade é uma linha de defesa de que dispõe o administrador para contraditar especulações maliciosas, e é tão mais convincente quanto mais adstringente é o limite a ele imposto.
O estatuto então foi imaginado como uma posologia cuja observância, guardada pelos Tribunais de Contas, surtiria contratações idôneas, sendo irrelevante a honestidade do sujeito promotor. Afiança-se o procedimento, não a pessoa.
Seus 126 artigos, entretanto, são descritos como um plexo intrincado de normas de enorme densidade, com interpretações criptográficas e intenções veladas, não expressas, insinuadas. Vai por terra uma primeira reclamação sobre a atual Lei, a de que seria um texto minudente. Se assim fosse, não daria azo a qualquer rotina interpretativa.
Quais são as outras reclamações que justificam a existência de dezenas de propostas de mudança em tramitação e duas Comissões Especiais para reforma? Vou tentar enquadrar as alegações em um esquema.
1) Em países com níveis menores de corrupção, as leis são mais permissivas.
Bem, pergunto-me qual a relação de causalidade aqui. Alguns parecem insinuar que leis mais permissivas reduzem a corrupção, mas tenho firme convicção de que se trata do contrário, ou seja, que a percepção de pouca corrupção permite despreocupação na mente do legislador. Outros subentendem que o nível de formalidade não é maneira de resguardar a importância da coisa negociada, mas aí traem seu próprio discurso, pois quando praticam ato que compromete naco mais substancial de seus próprios orçamentos, intuitivamente socorrem-se de mais cálculos, consultam familiares e advogados, registram instrumentos em cartório e tomam outras precauções.
2) A Lei retarda o atendimento das urgências do Estado Brasileiro.
De fato trata-se de uma longa sequência de expedientes acessórios à prática de um ato final. Segundo uma estatística disponível, uma concorrência de média complexidade toma cerca de 242 dias da opção de adquirir até a seleção da contratada. Em órgãos despreparados para comprar, muito mais tempo é necessário.
Quando se estuda o uso do tempo, no entanto, percebe-se que grande parte dele é dedicada à elaboração de projetos e à busca de licenças ambientais, preparativos comandados por outras Leis e resoluções. Não é justo debitar o tempo assim gasto na conta da “elaboração do edital”. Tenho certeza que uma medida de tempo apurada a partir de um projeto básico apropriado e com uma locação ambientalmente desembaraçada resultaria em três meses ou menos de espera.
O caso dos pequenos municípios brasileiros, nada obstante, merece atenção especial da Lei. Eles seriam beneficiados se fosse permitida maior integração, com Consórcios de Municípios, Estados ou União disponibilizando sistemas de apregoamento, editais padrão juntamente com as notas técnicas jurídicas que os aprovem e servidores efetivos para apregoamento ou fiscalização dos contratos. Em último caso, a Lei poderia mesmo autorizar que os entes maiores praticassem certas licitações pelos menores, por exemplo, permitindo a estes adesão a atas de Registros de Preços daqueles, desde que praticadas especificamente para este fim.
3) A primazia do critério “menor preço” é míope, uma vez que há uma infinidade de facetas da qualidade.
Dispensável dizer que “qualidade” é uma característica para a qual não existe régua no mundo das coisas. Ela é percebida pelo intelecto humano que, assim, atribui valor distinto para cada um. O Senador Pedro Simon ponderou, nas discussões da Lei 8.6666/93, que “o melhor engenheiro, no critério subjetivo do administrador, acaba muitas vezes por ser seu melhor amigo”.
A parte da qualidade que, por alguma arte ou ciência, é objetiva e aferível, faz com que concordemos em uma determinada ordenação das empresas. Assim equacionada, é possível traduzi-la em disposições de edital, seja nas especificações do objeto, seja empregando o critério “técnica e preço”, seja na adoção de margens de preferências para pequenas empresas, produtos sustentáveis ou com conteúdo nacional, tudo bem dentro do escopo da Lei.
4) A Lei força a celebração de aditivos contratuais.
Aditivos são exigidos para evidenciar que o objeto originalmente posto em disputa foi alterado. Não são proibidos, embora sejam um constrangimento. São menos causas de problemas e mais sintomas deles. Há uma proposta, intitulada “contratação integrada”, que incumbe à própria contratada a elaboração do projeto básico e dificulta a celebração de aditivos. Realmente nesse caso eles perdem seu sentido, pois se cabe à própria contratada dizer o que havia sido originalmente posto em disputa, não cabe que mais tarde alegue a alteração daquilo pretendendo beneficiar-se financeiramente. Não é boa ideia franquear este regime para todas as entidades nacionais, uma vez que é indispensável ter uma boa equipe de engenharia.
Quando a reclamação é acerca da informação, por sinal, mais informação tende a ser a solução. Há uma iniciativa do Instituto Rui Barbosa que pretende fornecer aos Tribunais de Contas a especificação de um sistema informatizado de controle de obras públicas parcialmente baseado em um sistema já existente, no sistema “Geo-Obras”, que consiste na disponibilização via web de editais, contratos, aditivos, imagens georreferenciadas, arquivos de projetos, planilhas de medição de obras de engenharia com a identificação daquelas paralisadas ou abandonadas.
5) A Lei não garante que obras sejam concluídas.
Aqui, realmente, há grande campo para avanço. A opção da Lei atual foi uma combinação de índices contábeis, exigências de habilitações operacionais e fórmulas matemáticas para aferir a exequibilidade de propostas, que, reproduzindo em Lei a engenharia econômica da época, tinham em mira afastar os supostos “aventureiros”. A técnica toda, no entanto, funcionou mais para restringir a competitividade do que para aumentar a saúde das avenças.
Reformas na Lei poderiam, por exemplo, imputar os custos de um procedimento licitatório ou da execução de um contrato frustrados àquele que deu causa, seja declarando-o inidôneo para contratar até que promova o ressarcimento do erário, seja socorrendo-se da garantia prestada.
No primeiro caso, os obstáculos são três: ultrapassar a pessoa jurídica que importunou o certame para alcançar o seu controle societário e afiliações; existir um cadastro único de fácil consulta; e haver uma interpretação jurídica uniforme sobre o tema.
No segundo caso, ao mencionar a expressão “seguro” de maneira singela como opção de garantia, a Lei subestimou a criatividade da indústria financeira na busca do significado mínimo para o instrumento. Existem hoje seguros cuja exclusão de riscos é mais abrangente que todas as demais cláusulas. Não são cobertos riscos trabalhistas e previdenciários, multas aplicadas pela contratante à contratada e há mesmo apólices que não toleram quaisquer descumprimentos contratuais das partes, desabilitando o motivo básico que ensejaria o seu acionamento e deixando dúvidas quanto a haver, de fato, algo segurado.
6) O controle feito pelos Tribunais de Contas é muito severo.
A composição dos Tribunais é egressa, na proporção de cinco para dois, de indicações políticas. Esse balanço dos universos político e técnico se observa em outros países da mesma tradição. François Hollande e Jacques Chirac, por exemplo, foram membros do Tribunal de Contas Francês antes de se tornarem Presidentes.
Ainda assim, há administradores que alegam que os Tribunais fazem uma interpretação fundamentalista da Lei e que paralisa licitações e contratos desnecessariamente. No ano de 2014, de um universo de dezenas de milhares de procedimentos licitatórios, foram denunciados ao TCE-SP 1.669 deles, tendo sido paralisados 789 tão somente.
Quando paralisados, a decisão que dá conta das alterações necessárias é emitida em cerca de 22 dias. Essa mesma parcimônia se observa em outros Tribunais.
O PLS 559/2013, no entanto, prevê severos obstáculos ao controle efetuado pelos Tribunais de Contas, criminalizando as condutas de oferecer representação e de determinar paralisação de obra em andamento. Licitantes e Conselheiros acreditando proteger o erário poderiam acabar na cadeia por isso. Parece contraditório aprovar uma Lei anunciando, ao mesmo tempo, que buscar cumpri-la poderá resultar punição mais severa do que ignorá-la.
Enfim, é essa a balburdia de que se ocupará a Comissão da Câmara que tem por missão decretar se a Lei 8.666/93 é boa ou não. Muitas discussões são simplesmente reedições do processo Legislativo dos anos 90, tais como o tipo preço base, a contratação administrada, o tabelamento de preços de engenharia e a famigerada capacidade técnico-operacional, vetada por duas vezes, mas, curiosamente, utilizada nas licitações do Brasil afora em um raro caso de veto que não “colou”.
Será necessário muito tirocínio para os integrantes da Comissão, capitaneada pelo Deputado Carlos Marun, a fim de que possam, por detrás de toda a gritaria, ouvir a tênue voz do interesse público.
* Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é professor da Fipecafi (Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras), da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP e integrante da Diretoria da Atricon – Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil.