Ao longo da minha vida pública, não foram poucas as vezes em que ouvi prefeitos se queixarem da divisão da receita tributária do país. Os municípios, afinal, embora sejam a ponta de lança da execução das políticas públicas, recebem uma fatia pequena do bolo.
Eles têm razão nisso. Dados de 2021 mostram que dois terços desse montante são de competência federal. Os estados, por sua vez, respondem por 26,8% dele, e os municípios, por apenas 6,9%.
Concebida para ter impacto neutro não apenas sobre o total da carga fiscal, mas também sobre os respectivos percentuais que cabem a cada uma das três esferas da Federação, a reforma tributária ora em apreciação pelo Congresso infelizmente não deve alterar essa realidade.
Seus efeitos, contudo, tendem a ser expressivos quando se trata da distribuição de dinheiro entre os municípios. Assim, não surpreende que muitos agentes políticos locais manifestem receios quanto a eventuais perdas de arrecadação, sobretudo num contexto em que eles já encontram dificuldades para obter recursos suficientes para custear despesas obrigatórias e cumprir com suas atribuições constitucionais.
Não por acaso, esse foi um dos assuntos discutidos num encontro com 200 gestores públicos da região central do estado de São Paulo do qual participei há algumas semanas.
A reforma, como se sabe, tem o objetivo de simplificar o sistema de impostos do país. Para isso, o texto da proposta de emenda constitucional define que os cinco tributos atuais sobre o consumo serão substituídos por um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual.
Os impostos federais IPI, PIS e Cofins serão substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), ao passo que os atuais ICMS (estadual) e ISS (municipal) serão substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Haverá ainda um terceiro imposto, federal, chamado de Imposto Seletivo, que incidirá apenas sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde da população ou ao meio ambiente.
Embora ainda restem muitas dúvidas sobre os desdobramentos que a reforma terá para os municípios, estudos têm mostrado que ela tem potencial para reduzir de forma substancial a desigualdade na partilha dos tributos.
Não se trata de uma questão menor. Considerados apenas os impostos municipais, isto é, o ISS e a cota-parte do ICMS, a diferença de receita per capita entre o município mais rico e o mais pobre alcança nada menos que duzentas vezes.
Um trabalho recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que é uma fundação pública federal vinculada ao Ministério do Planejamento e Orçamento, ajuda a jogar luz sobre o assunto. Ainda que o estudo tenha sido publicado após a aprovação da reforma pela Câmara dos Deputados e erigido a partir de premissas ligeiramente diferentes das definidas pelo Senado, ele é capaz de dar a dimensão dos impactos da reforma para os municípios brasileiros.
No primeiro cenário, os pesquisadores analisaram qual seria a receita de cada município com o novo imposto caso a mudança já estivesse em vigor no ano passado. No total, aproximadamente R$ 50 bilhões, ou 21% dos tributos municipais, trocariam de mãos, beneficiando 82% das cidades brasileiras, onde vivem 67% da população.
Como se isso não bastasse, os ganhadores, em geral, são os municípios mais pobres —98% dos que possuem PIB per capita inferior à média nacional e 98% das 108 cidades populosas e pobres que compõem o G100. Trata-se, como se vê, de um efeito redistributivo notável.
Esse resultado decorre, fundamentalmente, da combinação de duas mudanças: um novo tributo, em substituição ao ISS e ao ICMS, cobrado agora no destino, e não mais na origem; e a distribuição da cota-parte municipal do imposto estadual por novos critérios, sendo a população o principal deles. Dessa forma, a reforma tende a favorecer regiões menos desenvolvidas, que concentram proporcionalmente mais habitantes e consumo —e, consequentemente, maior demanda por serviços públicos.
Por outro lado, há risco de queda de arrecadação em municípios que são sedes de refinarias de petróleo, hidrelétricas ou de grandes empresas de serviços. É importante amenizar esse impacto, para o qual devem colaborar fundos a serem criados, além do fato de que a regra de distribuição dos recursos mudará gradativamente durante uma transição de 50 anos.
Quando se considera um crescimento anual médio do PIB de 1,5% nas próximas décadas –um cenário que os pesquisadores reputam pessimista, pois menor que os 2,1% verificados na série histórica do IBGE–, apenas um contingente pequeno de 32 municípios apresentaria perda de arrecadação ao fim dessas cinco décadas.
Com a eventual conclusão desse processo, segundo o estudo do Ipea, as atuais distorções produzidas pelas diferenças de receita per capita entre os municípios seriam consideravelmente reduzidas. Para se ter uma ideia, por esse critério, a discrepância da arrecadação por habitante dos municípios de Paulínia e Francisco Morato, que representam os extremos no estado de São Paulo, passaria de 37,3 vezes para 6,3 vezes.
Verdade que a reforma também tem os seus problemas. A contínua criação de diferentes alíquotas para distintos grupos de bens e serviços, além de outros tantos regimes favorecidos, distorce o espírito original do projeto e gera dúvidas sobre os seus reais avanços. Apesar disso, a possibilidade de trazermos equilíbrio para a receita dos municípios, beneficiando aqueles que mais precisam de recursos, deve ser defendida.
Muita água ainda deve rolar até que a reforma tributária entre em vigor, mas é fundamental que ela termine por fortalecer a esfera municipal. Para o bem do Brasil e dos brasileiros.
Dimas Ramalho – Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo