No último 5 de outubro, a nossa Constituição completou 35 anos, e os temas a seguir tratados estão relacionados a este marco histórico. Em um país que se acostumou a golpes e rupturas institucionais, a atual Carta Magna é a mais longeva em um ambiente democrático.
Na série de artigos publicados entre janeiro e março de 2023, neste espaço do JC, sob o título “Supremo Acerto de Contas”, a despeito da ênfase às decisões do STF que fortaleceram as atribuições dos Tribunais de Contas (TCs), alertamos para aspectos que poderiam, ao contrário da tendência histórica, fragilizar esses Órgãos. Uma das preocupações era a possível revisão da Súmula 347, que estabelece: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade de leis e atos do poder público”.
Editada em 1963, essa Súmula foi ratificada pelo STF ao longo dos anos. A partir de 2006, contudo, alguns ministros expressaram dúvidas quanto à sua compatibilidade com o modelo de controle de constitucionalidade introduzido pela nova CF. Essas dúvidas foram dissipadas, em agosto deste ano, no julgamento do Mandado de Segurança 25.888/DF, por meio do qual o STF confirmou a vigência da Súmula. Para o Ministro Gilmar Mendes: “[…] é possível vislumbrar renovada aplicabilidade da Súmula 347 do STF: o verbete confere aos Tribunais de Contas a possibilidade de afastar (incidenter tantum) normas cuja aplicação no caso expressaria um resultado inconstitucional, seja por violação patente a dispositivo da Constituição ou por contrariedade à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria”.
Da leitura do voto condutor, extraem-se algumas balizas: a) para os TCs afastarem uma norma, ela deve contrariar jurisprudência do STF ou ser manifestamente inconstitucional; b) essa apreciação pelos TCs tem efeitos limitados ao caso concreto. A novidade, de fato, foi a exigência de que tal competência seja exercida com cautela, quando a afronta à Constituição for incontroversa. Mais uma vez, o STF acertou. Não seria razoável impedir os TCs de negar aplicação a uma norma claramente inconstitucional, pois a legalidade deve ser compreendida no sentido amplo, em prestígio ao princípio da supremacia da Constituição. Ademais, as leis orgânicas dos TCs já exigem que essa decisão seja tomada por sua instância máxima e aprovada por maioria absoluta.
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A propósito do STF, lembrei-me de uma canção-prima de Chico Buarque. O Brasil tem o costume de eleger periodicamente as suas “Genis”. A política e o serviço público são frequentemente alvos de críticas radicais e seletivas. As pedras da vez miram o STF, acusado de invadir competências de outros Poderes. Não existe pessoa ou instituição imune a críticas. Sobre o STF, por exemplo, é legítimo discordar de suas decisões; discutir a fixação de mandatos para seus membros ou aumentar a idade mínima para assunção ao cargo; transformá-lo em uma Corte exclusivamente Constitucional; limitar decisões monocráticas em prol da segurança jurídica; aprimorar as sabatinas dos indicados e até ponderar sobre uma postura mais autocontida fora dos autos.
No entanto, boa parte da crítica, ao culpar o STF, esquece que é a própria CF que o designa como seu último guardião. A recente PEC que permite ao Congresso sustar decisão do STF que “extrapole os limites constitucionais” só tem paralelo em momentos autoritários. É “freio e contrapeso” (sic) que não encontra respaldo na boa doutrina, de Aristóteles a Rui Barbosa, passando por Locke, Montesquieu, Federalistas e John Marshall. É o aniquilamento da concepção de controle de constitucionalidade. Nessa discussão, é preciso considerar que a CF regula uma vasta gama de assuntos, e o STF, cada vez mais, é chamado a posicionar-se sobre temas complexos que dividem a sociedade, como os relacionadas aos direitos fundamentais: aborto, drogas, racismo, terras indígenas, homofobia, presídios. E isso ocorre em meio a outros desafios: a má qualidade das leis; o dever de, por vezes, contrariar a opinião da maioria (sendo contramajoritário), tudo isso em tempos marcados por extremismos e desinformação digital.
De registrar, ainda, a superficialidade de algumas críticas, quando passam ao largo do legítimo debate entre o “Neoconstitucionalismo”, corrente que defende uma atitude mais principiológica e ativa do Judiciário na interpretação das normas, e o “Positivismo Jurídico”, que preconiza um exame mais restrito. Nessa questão, sobressai uma miopia em relação ao próprio texto constitucional, que pede um papel mais afirmativo do STF quando este atua, por exemplo, em Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Nesta ação, mais do que guardião da Constituição, o STF é agente propulsionador da efetividade de seus preceitos basilares. Esse poder-dever é amiúde confundido com ativismo.
A CF-88 ainda é uma criança no relógio da história e enfrenta as dores do crescimento. Ulysses Guimarães, em seu histórico discurso de 5 de outubro de 1988, profetizou: “Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora; será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”. Em tempos obscuros, é a “Geni” da vez, com a “Lamparina” na mão, que vem ajudando a proteger os desvalidos e nos guiar para fora das cavernas.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE