“Borgen” é uma aclamada série de drama político que acompanha a vida da carismática e bem-intencionada Birgitte Nyborg, a primeira mulher a se tornar primeira-ministra da Dinamarca. Mesmo sendo uma obra de ficção, a série procura representar a realidade. Sem contar com maioria no Parlamento, Nyborg enfrenta o desafio das negociações políticas em temas difíceis como clima, obras, previdência, educação, saúde, gastos militares e ajuda a países pobres. Na busca por governabilidade, misturam-se acordos virtuosos, convencimentos verdadeiros, mas também chantagens, fogo amigo e barganhas. Marcellus, em Hamlet (Ato I, Cena IV), já tinha advertido que nem tudo eram flores naquele reino. Em muitos aspectos, a série revela a essência do jogo duro do poder, a Realpolitik.
O emblemático 3° episódio (1T) mostra o enorme teste para aprovação da primeira Lei Orçamentária de seu governo. A maioria parlamentar evapora logo no início. A poucos dias da votação, dois deputados aliados, decisivos para a aprovação, abrem uma dissidência e condicionam o apoio à inclusão de uma polêmica rodovia no reduto eleitoral. Outros, membros da oposição, só prometem o voto se houver o enfraquecimento de políticas públicas em defesa do meio ambiente, o aumento do orçamento militar e a exclusão de verbas para ajudar países africanos (fim dos spoilers!).
O propósito de trazer essa passagem de Borgen é realçar a importância do orçamento público para um país. Diz-se, com razão, que, depois da Constituição, a Lei Orçamentária é a mais relevante para o progresso de uma nação e também para a sua governabilidade.
Miremos o Brasil. A maior parte dos assuntos que ocupam o atual debate público envolvem o orçamento. É o caso de temas como reforma tributária, arcabouço fiscal, isenções, juros, inflação, emendas parlamentares, remuneração de servidores, transferências de renda e controles.
Vejamos o caso da reforma tributária. Ela promete, além de simplificar o labirinto jurídico do atual sistema tributário, torná-lo menos regressivo, logo, mais justo, propiciando as condições para ampliar a eficiência da arrecadação. Porém, sua maior virtude talvez seja a possibilidade de alavancar o desenvolvimento econômico, que poderá, em tese, acarretar maiores receitas e um novo padrão de financiamento das políticas públicas, sem, necessariamente, aumentar a carga. O arcabouço fiscal, por seu turno, almeja maior sustentabilidade da dívida pública, condicionando o aumento de despesas ao incremento das receitas. Com os juros, a mesma coisa. Se os juros caem, as despesas financeiras do governo diminuem, propiciando mais espaço para investimentos. Não se quer adentrar aqui no mérito de cada um desses temas áridos. O motivo de citá-los é apenas ressaltar o quão estratégico para a sociedade é o orçamento público e o debate que deve ser travado em torno dele.
Realçar a sua relevância não é modismo. É sempre bom lembrar o economista alemão, naturalizado americano, Richard Musgrave, que, no seu clássico “A Teoria das Finanças Públicas” (1959), já apontava as funções vitais do orçamento público: a “alocativa” (uso eficiente de recursos considerando as prioridades da população), a “distributiva” (redistribuição de renda na sociedade com o objetivo de promover justiça social) e a “estabilizadora” (estabilização da economia por meio de políticas fiscais e monetárias).
É justamente por tratar de temas de interesses de toda a sociedade que a sua tramitação no Legislativo costuma ser complexa e tensa. Aquele cenário de Realpolitik, vivido pela primeira-ministra da série Borgen, acaba existindo (em graus diferentes, é certo) em todas as democracias representativas, sejam monárquicas ou republicanas. Não esqueçamos que uma das formas de enxergar o regime democrático é compreender que ele existe no lugar das guerras e das disputas no braço ou à bala. É ele o meio civilizado e racional de se chegar aos consensos ou à maioria. Por isso, a sua natureza é dialógica e conflitiva.
Finalizemos com um dos temas em destaque no momento: as chamadas “Emendas PIX” – transferências especiais instituídas pela EC nº 105/2019, por meio das quais Parlamentares aprovam, via emendas individuais ao orçamento, valores a serem repassados diretamente a Estados, DF e Municípios, sem a necessidade de convênios (daí o apelido PIX). Detalhe: só em 2022, esses valores chegaram a 3 bilhões de reais.
O tema é complexo. Há quem defenda a sua crucial importância para a governabilidade e até quem as veja como instrumentos de eficiência, por partirem de parlamentares que vivem mais de perto as realidades locais. Outros apontam falta de critérios e de transparência, além de riscos de corrupção e de desperdícios, em razão de não guardarem a devida sintonia com o planejamento governamental. Debate relevante, mas que deixo para outro momento. Por ora, esperemos que os Tribunais de Contas (TCs) dos Estados, DF e Municípios, responsáveis pelo controle da aplicação das referidas verbas, conforme bem decidiu o TCU (Acórdão 518/2023), na linha das recomendações da Atricon (Associação dos Membros dos TCs), assumam mais esse relevante papel, mitigando os riscos de ineficiências e zelando pela máxima transparência e regularidade de suas aplicações.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE