Bruno Dantas e Frederico Dias
Na Odisseia, de Homero, o canto das sereias era irresistível: quem o ouvia, fascinado, lançava-se ao mar e encontrava a morte. Astuto, Ulisses adota medidas preventivas: ordena que seus homens tapem os ouvidos com cera para não escutarem a melodia traiçoeira e determina que o amarrem firmemente ao mastro do navio, permitindo-lhe ouvi-la sem sucumbir à tentação. Mais ainda, instrui que, mesmo se mudasse de ideia e suplicasse por liberdade, a ordem inicial prevalecesse.
Essa passagem da mitologia grega ilustra com notável clareza o conceito da “estratégia de compromisso prévio”: a celebração da racionalidade e do planejamento como instrumentos para conter impulsos imediatos e decisões irrefletidas.
À luz da teoria política, essa lógica inspira a criação de instituições, regras e limites que moldam a ação pública pela razão, afastando a tirania das paixões momentâneas. Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson, agraciados com o Prêmio Nobel de Economia em 2024, demonstraram que o vigor institucional constitui pilar essencial para o desenvolvimento econômico e a prosperidade das nações. O fortalecimento de estruturas permanentes, imunes às tentações episódicas, é condição necessária para que a liberdade e o crescimento floresçam em bases sólidas.
Foi sob essa perspectiva que, há 25 anos, nasceu a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Num ambiente de transição da hiperinflação para a estabilidade monetária, a LRF instituiu uma barreira racional contra o gasto desenfreado, impondo limites claros à ação governamental e consagrando princípios fundamentais: planejamento responsável, equilíbrio fiscal, transparência na gestão dos recursos públicos e responsabilização efetiva dos gestores.
Ao impedir que benefícios políticos imediatos fossem obtidos à custa de ônus fiscais futuros, a LRF estruturou um compromisso intergeracional em defesa da solvência do Estado e da integridade da democracia. Sua trajetória é eloquente: entre 1999 e 2011, a dívida líquida do setor público caiu de 60% para cerca de 36% do PIB, enquanto o País passou a registrar superávits primários consistentes, próximos a 3% do PIB ao ano.
Mais do que resistir ao tempo, a LRF incorporou a responsabilidade fiscal ao núcleo dos valores republicanos. Sua observância permitiu a consolidação de avanços macroeconômicos, a atração de investimentos e o fortalecimento da confiança nas instituições brasileiras. Sua inobservância, como a história recente demonstra, cobra preço elevado, afetando tanto a estabilidade econômica quanto a credibilidade política.
Durante a pandemia de covid-19, mesmo diante da necessária flexibilização temporária, a lógica da responsabilidade fiscal não foi abandonada. A retomada do rigor, tão logo as condições sanitárias permitiram, evidenciou a maturidade institucional que a LRF ajudou a construir.
Contudo, preservar esse legado exige vigilância constante. Persistem desafios expressivos: o endividamento público voltou a ultrapassar 74% do PIB em 2024; as despesas obrigatórias comprimem o espaço para investimentos discricionários; e o volume de subsídios, benefícios tributários e financeiros ultrapassa hoje R$ 647 bilhões — quase 6% do PIB nacional — conforme registrado no 8.º Orçamento de Subsídios da União. Esses fatores impõem a necessidade de zelo contínuo para evitar a erosão da base fiscal que sustenta as políticas públicas.
A boa aplicação da LRF conta, nesse esforço, com o acompanhamento de instituições de controle que promovem a efetividade de suas diretrizes. O Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, atua como agente de fiscalização e indutor da transparência, contribuindo para que os compromissos estabelecidos pela lei sejam respeitados, sem substituir a vontade popular, mas assegurando que ela se exerça dentro dos limites constitucionais.
Sua arquitetura institucional — formada por auditores federais de controle externo concursados, por procuradores independentes, que gozam das mesmas garantias e prerrogativas do Ministério Público Federal, e por um plenário de ministros experientes — reforça a estabilidade necessária para que as regras fiscais não se curvem às pressões conjunturais. A LRF, nesse cenário, ocupa para o TCU um lugar equivalente ao que a Constituição representa para o Supremo Tribunal Federal: uma referência permanente, que norteia sua atuação e fortalece a confiança pública na preservação do interesse coletivo.
Celebrar os 25 anos da LRF é reconhecer que a liberdade política e a prosperidade econômica repousam sobre a construção de compromissos institucionais duradouros. A responsabilidade fiscal não é um fim em si mesma, mas um instrumento indispensável para assegurar que os projetos democráticos sejam sustentáveis no tempo e que as escolhas de hoje não comprometam as gerações futuras.
Como advertia Cícero, em tempos já distantes, mas cujas lições permanecem atuais: “Somos servos das leis para que possamos ser livres”.
Reafirmar a LRF é reafirmar a aposta na racionalidade, na liberdade e na construção paciente de um futuro em que estabilidade e democracia caminhem juntas, preservando a esperança e a confiança das próximas gerações.
Bruno Dantas é ministro e ex-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU)
Frederico Dias é auditor do TCU