Artigo assinado pelo vice-presidente de Relações Político-Institucionais da Atricon, Cezar Miola, é publicado no portal Consultor Jurídico (Conjur); Leia a íntegra.
Cezar Miola
As emendas parlamentares, instrumentos legítimos concebidos para permitir a destinação de recursos do orçamento público ao atendimento de propósitos específicos, têm sido objeto de debates no cenário nacional. As questões agora levantadas, se não são novas, ganharam ênfase com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito.
É certo que o impacto dessas iniciativas no plano orçamentário, e seus reflexos nas políticas públicas, sobretudo considerando o conjunto das prioridades nacionais, vêm sendo suscitados desde o advento da Emenda Constitucional nº 105, de 2019, que versa sobre as emendas impositivas, assim chamadas nas hipóteses em que o Executivo é obrigado a executá-las quando aprovadas.
E são abordagens extremamente relevantes, porque dizem com custos, critérios, efetividade e entregas alcançadas à sociedade, tudo numa dimensão que precisa considerar planejamento, necessidades e avaliação de resultados. Porém, nas limitações deste espaço, e considerando as discussões da hora, particularmente se pretende uma breve e respeitosa abordagem relacionada à transparência e ao controle no tocante à matéria.
De fato, a ampla publicidade (princípio constitucional, como sabemos) na execução dessas emendas é pressuposto fundamental para que os recursos sejam utilizados de maneira eficiente, eficaz e em observância à ordem jurídica e ao interesse público. A falta de clareza e de mecanismos efetivos de controle sobre os montantes alocados pode abrir margem para desvios e prejudicar a boa e correta implementação de programas, projetos e contratações no âmbito da federação.
No cenário atual, a preocupação com a pouca transparência na execução de tais emendas vem se mostrando cada vez mais relevante e justificada. Embora alguns progressos tenham sido alcançados, ainda há um longo percurso a ser trilhado para que a sociedade possa acompanhar, de maneira detalhada e segura, a aplicação desses recursos. Medidas de instituições públicas e não governamentais podem contribuir para que se atinja tal objetivo.
Nesse sentido, merece destaque a publicação da Nota Recomendatória nº 01/2022 [1] pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), por meio da qual a entidade ofereceu diversas orientações às Cortes de Contas quanto à sua atuação em relação às transferências especiais de que trata a citada Emenda nº 105/2019.
A começar pelo entendimento de que incumbe às instituições com jurisdição sobre o respectivo ente local o controle externo acerca da aplicação das referidas verbas (observadas, evidentemente, p. ex., a análise do Tribunal de Contas da União quanto à aferição relativa às condicionantes aplicáveis, e as hipóteses de competências concorrentes — conforme, aliás, entendeu o próprio TCU). Tudo porque, como sabemos, as escolhas e as alocações orçamentárias no campo das políticas públicas cabem a quem investido da legitimidade democrática, com o voto popular, o que é basilar no nosso ordenamento constitucional.
E aos órgãos de controle, no dizer da mesma Carta, incumbe exercer a fiscalização à luz dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. É a mesma Constituição, emoldurando as competências de Poderes e órgãos e assegurando a cada qual os instrumentos de atuação.
Em seu item 2, o documento recomenda aos tribunais que orientem os gestores dos entes federados beneficiários que, entre outras ações, registrem na plataforma Transferegov.br os dados e informações referentes à execução dos recursos recebidos; evidenciem detalhadamente a execução orçamentária e financeira oriundas de transferências especiais nos demonstrativos fiscais; e registrem a receita decorrente de transferência especial conforme classificação definida pelo órgão central do Sistema de Contabilidade Federal.
A propósito, cabe registrar que no dia 19/8/2004 foi publicada a Portaria STN/MF nº 1.307, em atendimento às decisões proferidas no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 854, que estabelece providências para aperfeiçoar a execução das emendas parlamentares inseridas no orçamento da União, a Coordenação-Geral de Normas Contabilidade Aplicadas à Federação (CCONF). A normativa tem por objetivo aprimorar a transparência na execução dos recursos decorrentes das emendas parlamentares, conferindo novas classificações para as rubricas referentes às transferências em foco.
Já o Programa Nacional de Transparência Pública (PNTP) tem se consolidado como um importante mecanismo de avaliação e de fomento à transparência nas instituições públicas de todo o Brasil. Trata-se de uma pesquisa, realizada pela Atricon, cujos resultados se revelam preocupantes (os números podem ser acessados através do Sistema Radar.
Transferências especiais
O tema das transferências especiais passou a ser contemplado no PNTP a partir de sua segunda edição (2023), e, por meio dessa inclusão, buscou-se verificar se os portais dos municípios brasileiros identificavam as mencionadas emendas, especificando informações sobre a autoria, o valor previsto e o realizado, seu objeto e a respectiva função de governo. Também foi analisado se o sítio governamental correspondente apresentava detalhadamente a execução orçamentária e financeira atinente às transferências disciplinadas pela EC nº 105/2019 nos demonstrativos fiscais.
Em relação ao primeiro aspecto, observou-se que, em 2023, apenas 1.110 dos 4.045 municípios avaliados (27,5%) exibem, em seus portais, os aspectos exigidos. Essas informações estão atualizadas (ou seja, referem-se a, pelo menos, 2022) em tão-somente 897 sítios. Em 796, há divulgação de série histórica (isto é, há dados relativos, no mínimo, aos 3 anos que antecedem ao levantamento). Só 804 portais disponibilizam filtros de pesquisa com o objetivo de facilitar a busca de informações, e unicamente 815 permitem a gravação de relatórios em formato aberto.
Quanto ao segundo ponto, as taxas de atendimento são ainda menores. Somente 873 sites (21,6%) divulgam as informações, as quais estão atualizadas em apenas 651. Apenas 571 portais apresentam série histórica. No tocante às facilidades de acesso e manuseio dos dados, há filtro de pesquisa em 595 portais e possibilidade de gravação de relatórios em 609 deles.
Ainda de acordo com o estudo realizado pela Atricon, os municípios dos Estados de Goiás, Paraná, Sergipe e Tocantins são os que, na média, apresentam mais transparência em relação ao tema, atingindo, respectivamente, os índices de 41,95%, 34,57%, 33,47% e 29,50%. Já os entes locais de Piauí (7,03%), Amazonas (7,14%), Mato Grosso do Sul (7,97%) e Roraima (8,46%) são os que exibiram os piores resultados:
Estado | Índice de Transparência Geral dos Respectivos Municípios | Índice de Transparência dos Respectivos Municípios quanto às Emendas Parlamentares |
Goiás | 73,81% | 41,95% |
Paraná | 75,42% | 34,57% |
Sergipe | 58,44% | 33,47% |
Tocantins | 68,38% | 29,50% |
Ceará | 70,10% | 26,67% |
Rondônia | 78,92% | 26,15% |
Acre | 56,57% | 25,45% |
Pará | 77,85% | 24,94% |
Minas Gerais | 74,92% | 23,64% |
Alagoas | 55,84% | 20,25% |
São Paulo | 57,87% | 18,20% |
Rio Grande do Norte | 61,37% | 17,69% |
Maranhão | 63,06% | 17,64% |
Pernambuco | 55,94% | 15,38% |
Rio de Janeiro | 57,94% | 15,33% |
Espírito Santo | 67,52% | 14,19% |
Mato Grosso | 60,15% | 13,79% |
Bahia | 38,30% | 13,34% |
Santa Catarina | 60,94% | 11,83% |
Paraíba | 53,19% | 10,51% |
Rio Grande do Sul | 59,36% | 10,14% |
Amapá | 37,13% | 9,38% |
Roraima | 37,36% | 8,46% |
Mato Grosso do Sul | 52,03% | 7,97% |
Amazonas | 43,74% | 7,14% |
Piauí | 45,29% | 7,03% |
O Centro-Oeste (27,70%) e o Norte (22,09%) são as regiões que mais divulgam informações sobre emendas parlamentares. Sul (18,92%) e Sudeste (17,41%) apresentam desempenho semelhante. O menor índice, por sua vez, é o do Nordeste (14,07%).
Outra análise possível diz respeito ao nível de transparência de acordo com o porte populacional dos Municípios: em regra, quanto menor o ente, diminui a taxa de divulgação dos informes sobre emendas:
Faixa Populacional | Índice de Transparência | Índice de Transparência quanto às Emendas Parlamentares |
Até 5 mil habitantes | 58,94% | 16,86% |
Entre 5 e 10 mil habitantes | 58,97% | 18,48% |
Entre 10 e 20 mil habitantes | 58,04% | 18,33% |
Entre 20 e 50 mil habitantes | 60,66% | 19,02% |
Entre 50 e 100 mil habitantes | 64,64% | 22,18% |
Entre 100 e 300 mil habitantes | 68,44% | 25,26% |
Entre 300 e 500 mil habitantes | 72,78% | 34,47% |
Acima de 500 mil habitantes | 72,57% | 37,25% |
As situações colocadas exigem providências. Os diagnósticos produzidos pelos Tribunais de Contas são essenciais para que se possa avançar em direção a um cenário onde a transparência seja uma realidade consolidada.
Mas, para além disso, é fundamental que todos os atores envolvidos implementem as ações que lhes cabem nas respectivas esferas de competência. E que a sociedade esteja engajada nesse processo, acompanhando e fiscalizando a execução dessas emendas, exercitando o denominado controle social. Só que para isso o pressuposto básico é o acesso à informação; afinal, não se controla o que não se conhece.
Transparência e controle são pilares da república e da democracia. Por isso, sempre vale invocar a sabedoria de Norberto Bobbio: “a administração pública deve estar em público”.
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[1] Disponível em: https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2023/07/Nota-Recomendatoria-Atricon-no-01-2022-Atualizacao-14-07-2023-3.pdf.
Cezar Miola – Vice-presidente de Relações Político-Institucionais da Atricon