“Quem é bacharel não tem medo de bamba”, cantou Noel Rosa, louvando o convívio na diversidade em seu samba clássico. Nada de novo haveria, exceto a dificuldade de cantá-lo hoje em dia, dada a binariedade que impacta a nossa realidade. Das inúmeras dicotomias que nos dividem, aquela entre o público e o privado persiste há décadas. Assim é em relação ao controle externo da administração pública. De tanto em tanto, ressurge a apologia às auditorias privadas, em contraponto à atuação dos Tribunais de Contas (TCs). Senão, vejamos.
Recente artigo neste Estadão (28/6, A7), que principia referindo amostra das perversões do nazismo, é contundente na crítica a instituições de Estado. E daí já emerge algo que pode até soar paradoxal, justamente porque é próprio desse regime autoritário o aniquilamento da vida democrática e do que lhe é inerente, como a independência e a harmonia dos Poderes.
Na sequência, defende a extinção dos Tribunais de Contas, imputando-lhes parcela de culpa pelo risco do que o autor considera a derrocada do Estado de Direito e da democracia. Nada se ouviu, todavia, quanto a iguais medidas em relação a outros entes que, por igual, têm sido questionados. Menos mal que propostas assim não surgiram, pois é no aperfeiçoamento das instituições, e não na sua extinção, que devemos investir. Iniciativas voltadas ao aprimoramento existem, necessitando de apoio para avançarem, principalmente do verdadeiro titular do poder: o povo.
Já a solução apontada – as auditorias privadas – longe está de ser uma panaceia para os aventados males do controle. Basta recordar casos como o da escandalosa fraude contábil da norte-americana Enron, em 2001, e o da crise do subprime de 2008, com consequências planetárias no sistema financeiro. E, ainda, o recente episódio relacionado a grande empresa brasileira em que foi noticiada a prática, por muitos anos, de uma suposta contabilidade criativa, sem que, apesar dos números vultosos, tivesse sido apontada (aliás, aquela expressão é imprópria, já que a contabilidade é uma ciência que prima pela correção). Nesses casos, o controle privado não foi eficaz, para dizer o menos. E nada leva a crer que fora do espaço estatal haveria um ambiente imune a pressões. Assim, generalizar é descabido e injusto; cada qual tem seu espaço de atuação, cabendo fazê-lo com respeito às leis e de forma ética.
Conforme a Constituição de 1988, as competências dos Tribunais de Contas vão para muito além da aferição quanto à legalidade estrita, abrangendo também a análise da eficiência, da eficácia e da economicidade. Para isso, os TCs realizam inspeções in loco, acompanham a gestão, estimulam soluções consensuais, capacitam dezenas de milhares de agentes públicos a cada ano e editam medidas cautelares, orientações e recomendações (estas sempre mais efetivas, porque previnem o dano). Isso para não falar no fator inibidor, pela simples existência do controle.
Além disso, desde 2013 a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) executa um amplo programa de avaliação nos 33 TCs brasileiros. É o Marco de Medição de Desempenho (MMD-TC), pelo qual esses órgãos têm sua atuação examinada em cerca de 500 quesitos. Entre eles: monitoramento das políticas públicas, como educação, saúde e segurança; controle de obras e das despesas de pessoal; corregedoria; controle interno; acesso à informação; estímulo ao controle social; cumprimento de prazos; além de muitos outros.
Órgãos destinados a, controlando despesas e receitas públicas, legitimar o tributo arrecadado da sociedade, os Tribunais de Contas têm mais de 130 anos de existência e são fruto da República que nos tornamos e comprometidos com o regime democrático. Aperfeiçoá-los será sempre possível e desejável no contexto do debate político plural. Induzir a boa governança, voltada à concretização dos direitos fundamentais, é a missão dos órgãos de controle. Os trilhões de reais dos orçamentos que fiscalizam assim o exigem.
Cezar Miola – Presidente da Atricon
*Artigo publicado no Estadão