Bruno Dantas
Guilherme Mazarello
O Judiciário pode interpretar a Constituição sem ouvir a sociedade? Ou deve abrir-se ao debate público para fortalecer sua legitimidade? O conceito de diálogos constitucionais surge como resposta a esse questionamento, superando a visão tradicional que atribui às Cortes a palavra final sobre a interpretação da norma fundamental.
Brasil e França oferecem experiências contrastantes nesse cenário, refletindo concepções distintas sobre o papel das Supremas Cortes e a relação entre Constituição e democracia.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal consolidou-se como um tribunal permeável à sociedade, abrindo espaço para audiências públicas e para a participação de amici curiae.
Essa abertura é reforçada pela transparência das deliberações, televisionadas e acessíveis ao público, permitindo um controle social sobre as decisões judiciais.
Já na França, o Conseil Constitutionnel mantém uma postura mais reservada, com restrições significativas à intervenção de terceiros e um modelo de deliberação fechado, no qual os debates não são públicos e os critérios de admissibilidade para intervenções externas permanecem pouco previsíveis.
Essa diferença de abordagem não é meramente acidental. No Brasil, a Constituição de 1988 fez do STF um protagonista da vida institucional do país, conferindo-lhe amplas competências no controle da constitucionalidade das leis. Para responder a esse protagonismo, o tribunal passou a ampliar as formas de participação social. Essa não é a realidade do sistema francês, onde existe uma histórica desconfiança do Poder Judiciário e uma relativa polêmica quanto ao status institucional do Conseil Constitutionnel.
A figura do amicus curiae, perante o STF, em processos de fiscalização abstrata de constitucionalidade, foi formalizada pela Lei nº 9.868/99 e reforçada pelo Código de Processo Civil de 2015. Esses diplomas normativos permitiram que organizações acadêmicas, associações e entidades da sociedade civil interviessem em julgamentos de grande relevância.
Entre 2006 e 2014, aproximadamente 30% das ações diretas de inconstitucionalidade contaram com a participação de amici curiae. Esse percentual tem crescido progressivamente, tornando-se um dos pilares da cultura jurídica do tribunal. Atualmente, contudo, não são raras as manifestações dos ministros em crítica ao modo pelo qual o instituto se propagou na prática decisória da Corte.
Outro aspecto distintivo do modelo brasileiro é a publicidade das decisões e do processo deliberativo.
Diferentemente da tradição europeia, na qual as deliberações frequentemente ocorrem a portas fechadas, o STF opera sob um regime de visibilidade plena. As sessões televisionadas permitem que a sociedade acompanhe não apenas os votos dos ministros, mas também as manifestações dos amici curiae, reforçando a legitimidade das decisões.
Ainda que alvo de críticas por sua exposição midiática, esse modelo fortalece a transparência do tribunal e aproxima o Judiciário do debate público.
Na França, a reforma constitucional de 2008 introduziu a Question Prioritaire de Constitutionnalité (QPC), mecanismo que permitiu aos cidadãos questionar a constitucionalidade de leis em vigor. O mecanismo operou uma verdadeira revolução no direito constitucional francês e encerrou uma tradição, até então, consolidada de rejeição ao controle repressivo de constitucionalidade.
Essa inovação representou um avanço no exercício do controle de constitucionalidade, tradicionalmente concentrado no Conseil Constitutionnel, em sua via preventiva, e de menor repercussão no direito francês em comparação com seus países vizinhos. No entanto, a participação da sociedade civil nesse processo permanece limitada.
Diferentemente do Brasil, onde os amici curiae têm papel consolidado, o direito francês prevê de forma bastante limitada os modos de intervenção, sem distingui-los. A intervenção de terceiros no Conseil é excepcionada, e a decisão sobre sua admissibilidade ocorre de forma discricionária, sem fundamentação detalhada. Daí por que é comumente designado como um sistema de “portas estreitas”.
Essa postura mais fechada tem sido alvo de críticas. O jurista francês Marc Guillaume observa que o Conseil mantém uma “zona cinzenta” quanto à participação de terceiros. Os critérios de admissibilidade são rígidos, mas também erráticos, aplicados de forma pouco previsível. Essa falta de clareza gera um deficit de legitimidade, especialmente em um contexto no qual o controle de constitucionalidade tem assumido um papel mais central no sistema jurídico francês.
O contraste entre Brasil e França ilustra um dilema maior: como equilibrar segurança jurídica e participação democrática? Um Judiciário excessivamente fechado corre o risco de se distanciar das dinâmicas sociais. Por outro lado, uma Corte demasiadamente permeável pode comprometer a previsibilidade das decisões e a coerência da jurisprudência, bem como tornar o tribunal vulnerável a influências questionáveis.
A pluralização dos atores envolvidos no processo constitucional fortalece a percepção de que o Judiciário não é um poder isolado, mas parte de um sistema de pesos e contrapesos que inclui o Parlamento, o Executivo e a própria sociedade.
O século XXI impõe às Cortes Constitucionais o desafio de redefinir seus limites e funções. O modelo tradicional, no qual a última palavra cabia exclusivamente ao Judiciário, está sendo substituído por um arranjo mais dinâmico, no qual a legitimidade decorre não apenas da fundamentação técnica, mas também da capacidade de diálogo.
No Brasil, esse processo já é realidade, ainda que sujeito a ajustes e críticas. Na França, os primeiros passos foram dados, mas a jornada rumo a uma maior abertura ainda é longa. É nesse contexto que aprendizagens mútuas são possíveis.
O Judiciário, afinal, deve se abrir ao debate ou preservar sua discrição? A experiência comparada sugere que um tribunal hermético não é compatível com democracias modernas. O desafio não consiste apenas em decidir quem pode falar, mas em garantir que a voz da sociedade seja ouvida sem que isso comprometa a integridade da Constituição.
Bruno Dantas é ministro e ex-presidente do TCU
Guilherme Mazarello é doutorando em direito constitucional pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em direito constitucional pela Université de Paris