“Se a história se repete, e o inesperado sempre acontece, quão incapaz precisa o homem ser de aprender com a experiência? “
George Bernard Shaw
O ajuste fiscal promovido pelo Governo Federal, medida necessária para evitar o desequilíbrio orçamentário, possui custos sociais que poderão ser compensados pelos resultados econômicos positivos que se pretende alcançar. Nesse cenário, porém, agrava-se um contencioso que merece a atenção da sociedade, por envolver a redefinição de valores da dívida pública de diversos Estados e Municípios com a União.
Como já restou estabelecido com a edição da Lei Complementar n. 148, de 25 de novembro de 2014, são excessivos os índices de correção e os juros praticados pela União na cobrança de valores relativos à federalização da dívida de Estados e Municípios, pactuada em 1998, e que permitiu a troca da dívida mobiliária, de curto prazo, por outra de natureza contratual, com prazo de 30 (trinta) anos.
Essa sistemática produziu grandes distorções, transformando, no caso do Rio Grande do Sul, uma dívida de R$ 7,4 bilhões em um passivo de R$ 46,3 bilhões. O expressivo montante do saldo devedor reflete a incidência da taxa de juros fixada em 6% ao ano e o crescimento, até 2014, de 277% do IGP-DI, índice de correção adotado pela União no refinanciamento da dívida.
A dimensão desses impactos fica melhor demonstrada pelos números extraídos do Balanço Geral do Estado do RS, que revelam, de 2010 a 2014, despesas com o serviço da dívida pública superiores até mesmo aos investimentos em saúde (em 2014 a saúde recebeu R$ 3,153 bilhões, enquanto a dívida pública consumia R$ 3,268 bilhões).
Por outro lado, dados oficiais indicam que a participação da União no financiamento das ações e serviços de saúde caiu de 59,8%, em 2000, para 44,7%, em 2011, representando a redução de 15,1 pontos porcentuais do total investido no País. No mesmo período, os Estados passaram de 18,6% para 25,7%, e os Municípios, de 21,7% para 29,6%.
Importa ainda destacar que a mesma União que cobra dos demais entes federados, em média, 11,5% ao ano, no sistema ainda vigorante, oferece a organismos privados taxas de juros TJLP de 5,5% a 6% ao ano, em empréstimos concedidos pelo BNDES.
E que, em 2015, o custo para a União do subsídio às atividades de financiamento praticadas pelo BNDES, previsto pelo governo federal, é de R$ 30 bilhões, muito superior ao impacto fiscal da renegociação da dívida com os Estados e Municípios, estimado em R$ 3 bilhões.
A propósito, num tempo não muito distante se bradava contra as taxas consideradas abusivas nas relações do País com organismos internacionais (vide o “Fora FMI”), quando alguns dos atores da cena atual professavam convicções distintas daquelas hoje sustentadas. Afinal, que Federação é essa?
Na esfera legislativa, o reconhecimento dessa desproporção e de seus efeitos sociais lesivos levou à aprovação da já referida LC n. 148/2014, que autorizou a troca do indexador da dívida, estabelecendo condições mais benéficas, de 4% de juros mais IPCA ou, alternativamente, a taxa Selic (o que for menor), com efeitos retroativos a 1º de janeiro de 2013.
Para permitir que as dívidas com a União sejam renegociadas a partir de novos indexadores, independentemente de regulamentação, o Congresso Nacional está apreciando nova proposição legislativa que poderá estabelecer o prazo de 30 dias para a firmatura dos aditivos contratuais.
Ao defender a repactuação da dívida, não se está reduzindo a importância da sanidade das contas públicas nem, muito menos, relativizando diretrizes e princípios estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), norma cuja estrita observância sempre foi exigida pelos Tribunais de Contas.
Ocorre que, nesse episódio, ao lado da questão fiscal, em que estão em jogo receitas públicas, trata-se de reconhecer a existência de relação contratual defeituosa, estabelecida em parâmetros que levaram ao agudo desequilíbrio entre as partes.
E, como pacificamente se reconhece aos particulares no âmbito do direito das obrigações e, principalmente, nas relações de consumo, também aos entes públicos deve-se assegurar a revisão de pactuações que se revelarem por demais gravosas, impondo à sociedade sacrifícios que estão além do razoável.
Em uma relação federativa, não se deve admitir que o pagamento dos compromissos de um ente para com outro seja fator de comprometimento da qualidade mínima dos serviços públicos e se dê à custa de práticas usurárias entre aqueles que, conforme preconiza a Constituição, são conjuntamente incumbidos de concretizar o bem comum, numa “sociedade livre, justa e solidária”.
* Cezar Miola é presidente do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul