Lógica sem resguardo

*Cezar Miola, presidente do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa (CTE-IRB)

Reflexo do longo período de fechamento das escolas e da escassa oferta de ensino público online, vemos problemas como o déficit de aprendizagem e o abandono e a evasão escolares crescerem de forma descontrolada. Apenas 6,6% das escolas públicas forneceram internet em domicílio para os alunos na pandemia, segundo um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Somado a isso, ainda temos um número significativo de estudantes vinculados a escolas sem condições de infraestrutura para cumprir os protocolos básicos de segurança para o retorno às aulas presenciais. Um cenário que exige ações articuladas e específicas para enfrentar problemas que já eram crônicos mesmo antes da pandemia. Como sabemos, não existem soluções mágicas sem recursos para o custeio do planejamento e da execução das ações. 

Mas essa lógica parece não encontrar resguardo nos ambientes responsáveis pela tomada de decisões. Em 2020 tivemos um crescimento significativo dos entes que não investiram o mínimo constitucional de 25% das receitas em educação, tema que deverá ser enfrentado pelos Tribunais de Contas.  E agora, mesmo que ainda estejamos em agosto, já se anuncia essa mesma possibilidade para 2021. Para garantir que esse retrocesso não resulte em sanções aos administradores, tramita no Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 13/2021. O texto isenta gestores municipais e estaduais de possíveis penalidades pela não aplicação do mínimo constitucional.

A se concretizar, será uma situação potencialmente danosa à educação básica do país. E o prejuízo maior, como sempre, será das famílias mais pobres, agravando as desigualdades sociais. De acordo com relatório do Unicef, pelo menos 5,1 milhões de crianças e jovens tiveram seu direito à educação negado durante a pandemia.  É consenso que esses números influenciarão diretamente a economia do país, impactando índices de violência, precarização e produtividade do trabalho e desemprego.

Ressalto, desde logo, que todos os argumentos merecem a devida consideração no contexto do debate democrático. Cabe ponderar, porém, que a eventual alteração do texto constitucional gera preocupação porque também pode estabelecer precedente para se encontrar idênticos motivos em outros exercícios. Ou até para se pretender a eliminação dos pisos previstos na Lei Maior, o que, então, afetaria também a saúde.

Passados um ano e meio do início da pandemia, é preciso avaliar a condução das gestões ao longo desse período. Houve planejamento para o enfrentamento de questões como a oferta do ensino a distância, fornecimento de alimentação escolar para as famílias em situação de vulnerabilidade, ações de combate ao abandono escolar, investimento em melhorias das infraestruturas das escolas para garantir um retorno às atividades presenciais de forma segura? Essas são algumas das questões que precisam ser respondidas. Assim, não cabe, a priori, afastar a responsabilidade de administradores. É preciso analisar a conduta de cada um: se houve omissão, negligência, ineficiência ou desvio de finalidade na aplicação dos recursos. Situações pontuais, em que, comprovadamente, o quadro de pandemia impediu a aplicação do mínimo constitucional, serão ponderadas pelos Tribunais de Contas, de acordo com as especificidades evidenciadas. É, pois, no caso concreto que se vai avaliar a conduta do gestor e se decidir, ou não, pela aplicação de pena. Tudo à luz das garantias constitucionais e dos princípios regentes dessa política pública. 

Estamos tratando de uma exigência constitucional que vem desde 1934, com intervalos apenas em 1937 e 1967, em contextos históricos marcados pela ruptura na ordem democrática. E na atual Constituição há ainda uma referência expressa à absoluta prioridade à criança, ao jovem e ao adolescente, no art. 227. Porém, como falar em prioridade se faltam recursos? Se não asseguramos os investimentos, não poderemos concretizar direitos. E, no caso, do direito fundamental à educação, e do dever do Poder Público de assegurá-lo. Possibilitar, de qualquer forma, a redução de recursos para a educação num quadro de tamanhas necessidades (e até de urgências), acaba por evidenciar que a prioridade constitucional não se materializou. E, assim, só se agrava uma situação que já se tornou crônica.