As Espadas de Dâmocles mais recentes – a pandemia e os riscos concretos de ruptura democrática – foram aplacadas e abrandadas. Já é o outro dia; já é “amanhã”. O 7 de Setembro deste ano deveria ser especial, celebrado em sua plenitude, indo além da simbologia do “Grito do Ipiranga”. O momento pede reflexão e reverência a feitos históricos e personagens que moldaram a nação brasileira. A independência formal de um país tem pouca relevância quando dissociada de valores civilizatórios como a Liberdade e o Estado Democrático de Direito. A independência é, portanto, um conceito-propósito mais amplo e um desafio para todas as gerações.
Albert Einstein incentivava a busca pelo conhecimento, mas nos alertou para o valor da imaginação. Topo a “Parada”.
Enfim, o dia do Grande Desfile. Há muitas canções que marcam a celebração. As mais emblemáticas: Aquarela do Brasil (Ary Barroso); O Trenzinho do Caipira (Villa-Lobos); Positivismo (Noel Rosa); Asa Branca (L Gonzaga); Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (G. Vandré); Pelas Tabelas e Vai Passar (Chico Buarque); Menestrel das Alagoas (Milton Nascimento); Anjos Tronchos (Caetano); No Tempo da Intolerância (Elza Soares); Sol de Primavera (Beto Guedes) e os Hinos oficiais.
As primeiras alas enaltecem a diversidade de nossa formação: o Índio, o Negro e o Branco, ressaltando a dívida histórica com os dois primeiros grupos, fruto da extinção de povos indígenas e da chaga da escravidão. As alegorias representam figuras, como os irmãos Villas-Bôas, Câmara Cascudo, Joaquim Nabuco, Luiz Gama, Princesa Isabel, Gilberto Freyre, Raimundo Faoro, Dom Helder, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Evaldo Cabral e Sérgio Buarque.
Logo à frente, surge o pelotão que exalta os movimentos libertários pré-1822: Inconfidência Mineira (1789), Conjuração Baiana (1798) e Revolução Pernambucana (1817). Tiradentes, Cipriano Barata e o Padre João Ribeiro Pessoa são destaques. Em seguida, os movimentos do período monárquico, como a Revolta Farroupilha e a Confederação do Equador, em que Bento Gonçalves e Frei Caneca são reconhecidos pelas bandeiras republicana e federativa. O próprio Pedro II é lembrado pela defesa da ciência, da unidade territorial e da postura “republicana”. Reluz a ala em memória da “Lei Áurea” (1888). Ali, juntinho, a exaltação da República (1889) e do lema “Ordem e Progresso”, mesmo sabendo que o ideal positivista original defendia o “Amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim” (a omissão do “amor” em nossa Bandeira talvez explique parte da complexidade dos nossos problemas).
Eis que surge um som retumbante de pessoas de todas as tribos. Elas vêm pelo meio da rua, batendo panelas, de blusas amarelas, azuis, verdes, brancas, vermelhas, rosas, pretas, multicores. Essa ala – a mais vibrante do Desfile — celebra os 40 anos do movimento “Diretas Já”, a nossa maior manifestação popular pela democracia, essencial para a superação de uma das páginas mais infelizes de nossa história: a Ditadura Militar. Ulysses Guimarães ocupa o lugar mais alto no “Carro da Democracia”, segurando um exemplar da Constituição de 1988, a primeira filha das “Diretas”, uma das “Cidadãs” mais ovacionadas da festa. Ao lado dele, outros grandes peregrinos da causa: Tancredo Neves, Teotônio Vilela, Miguel Arraes, Jarbas Vasconcelos, Fernando Lyra, Marcos Freire, FHC, Lula, Dante de Oliveira, Brizola, Montoro, Mário Covas, Fafá de Belém, Cristina Tavares, entre tantos. Ah, não podemos esquecer a coragem pioneira dos vereadores de Abreu e Lima (PE), Reginaldo Silva, Severino Farias, José Brito e Antônio Amaro, que, já em março de 1983, foram às ruas por eleições diretas. Súbito, um silêncio ensurdecedor em memória dos torturados e “desaparecidos” no período autoritário. Sem eles, não haveria este hoje.
Reconhecer ações e personalidades da história, contudo, não implica esquecer os graves problemas que nos afligem. O Desfile também é palco para externar preocupações e reivindicações. O penúltimo bloco implora para que não nos esqueçamos das marchas da insensatez que culminaram com o trágico “8 de Janeiro de 2023” e da resiliência das Instituições democráticas diante daquele misto de golpismo e “sanatório geral”. Apela também para que a responsabilidade, a tolerância e a boa informação prevaleçam, inclusive nas mídias digitais, e que os Poderes da República e seus Controles, depois de todas as lições, consolidem o máximo equilíbrio entre harmonia e independência.
A evolução encaminha-se para o final. O clima é de verdadeira “Ação de Graças”, de alívio cívico, pelos atos de resistência e das conquistas civilizatórias de nossa história, algo que nos faz lembrar o “25 de Abril” da Revolução dos Cravos em Portugal (1974), evento restaurador da democracia nesse país.
A última ala do Grande Desfile é formada por crianças carregando cartazes em defesa do meio ambiente e por educadores “armados” de lanternas que iluminam livros de autores como Gonçalves Dias, Machado, Guimarães Rosa, Drummond, Bandeira, João Cabral, Graciliano, Cecília, Lispector, Raquel, Adélia, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Quintana, Ariano. A simbologia desse gran finale fala por si. As nossas desigualdades históricas, a causa-mor de todas as mazelas que ainda persistem, como a pobreza, só será resolvida com mais e melhor EDUCAÇÃO.
Não sei se será desse jeito, só sei que imaginei assim.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE