No futebol, a “pedalada”, como foi batizada, representa um dos movimentos de que se vale o jogador para passar sobre o defensor adversário e, consequentemente, chegar mais próximo às redes. Consiste, basicamente, em um drible. Em termos futebolísticos as pedaladas são comuns e agitam as torcidas.
No âmbito político econômico o uso das chamadas “pedaladas fiscais”, também agitam o público, mas causando um misto de perplexidade e confusão nunca despertada antes no âmbito das contas públicas.
Assim como no esporte e, justificando o uso por analogia do termo, a pedalada fiscal consistiria, em primeira análise, num drible realizado pelo governo para desviar-se das disposições da Lei de Responsabilidade Fiscal, de forma que, ao final da gestão, os números da execução orçamentária estivessem (ou aparentassem estar) positivos.
Para aqueles que não conhecem as expressões do universo do futebol, equivaleria a realização de uma “maquiagem” nas contas, expressão também comumente empregada para caracterizar esta movimentação.
Nas últimas semanas o tema tem sido superexposto nos meios de comunicação e, protagonizando as atenções, o Tribunal de Contas da União, especialmente diante do fato do Ministro Augusto Nardes, relator do processo de prestação de contas do Governo federal, ter dado prazo à Presidente da República para apresentar justificativas que, segundo ele, seriam necessárias ao esclarecimento de irregularidades que conduziriam à emissão de parecer prévio recomendando a rejeição das contas, procedimento adotado de forma inédita pela Corte.
Diante desta providência e, considerando ainda que nunca houve na história do TCU, parecer prévio pela rejeição das contas do governo federal, é justificável que haja tanta inquietação diante do assunto e também muito desconhecimento, fazendo-se necessário pontuar alguns esclarecimentos.
Da leitura atenta dos relatórios técnicos e pareceres prévios emitidos pelo TCU desde o exercício de 2001 disponíveis para consulta pública e tomando-se como premissa a sintética conceituação acima exposta, o fato é que as denominadas “pedaladas fiscais” não são tão inéditas como todo o agito que se tem feito em torno delas.
O TCU, diante de ocorrências semelhantes em exercícios anteriores, tem mantido firme posição no sentido de ressalvar a questão e não como um apontamento suficiente à caracterização de irregularidade grave o bastante a justificar a emissão de parecer prévio pela rejeição.
As contas presidenciais de 2011, por exemplo, trazem uma inconsistência de R$ 17,8 bilhões em saldos da Conta Única do Tesouro Nacional, devido a pagamentos realizados na transição do exercício, para que o saldo terminasse o ano no verde.
A própria Corte, em relatório, reconheceu que “postergado um montante materialmente relevante de saída de caixa de dezembro para janeiro, poderá ocorrer superavaliação do superávit primário e subavaliação do déficit nominal e do endividamento líquido do Governo Federal”.
Com isso quis dizer que, com os pagamentos realizados em dezembro, para o consequente saque somente em janeiro, se estaria jogando com valores substanciais a fim de influir nos indicadores fiscais de final de exercício, aumentando o superávit primário e diminuindo o déficit nominal. Todavia, o Tribunal frente a esta impropriedade, somente ressalvou o fato e recomendou que se estabelecesse “regras rígidas para pagamentos com contabilização no Tesouro Nacional em dezembro e saque em janeiro”.
Nos anos posteriores também podem ser encontrados apontamentos neste mesmo sentido e com valores ainda maiores. Em 2012, a saber, houve aumento de 24,3% no montante de ordens bancárias emitidas no último dia de dezembro de 2012 em relação àquelas emitidas no mesmo dia de 2011.
Não se pode negar que esta manipulação de valores não seja um drible à Lei de Responsabilidade Fiscal e suas metas de planejamento, consistindo, consequentemente, nas chamadas “pedaladas fiscais”.
Diante disso revela-se a questão ou o impasse: as manobras tidas como irregularidades em 2014 são de maior relevância para o desfecho das contas que as ocorridas em exercícios anteriores ou o TCU não vinha reconhecendo a sua gravidade?
Talvez a resposta tenda mais à linha da segunda afirmação.
As normas jurídicas devem ser interpretadas de forma teleológica e prospectiva, ou seja, sob o prisma de sua finalidade como descritiva de valores ou comportamentos.
Assim, a LRF não pode ser descumprida, nem maquiada e, ainda menos, driblada. Deve ser aplicada em seu objetivo e acarretar as devidas consequências face ao seu desrespeito.
Neste último aspecto penso que o TCU poderia ter sido mais enfático, porque ao ressalvar este ponto no contexto geral das contas, o Tribunal deveria ter deixado claro no Parecer Prévio, a possível posição de intolerância com relação a eventual reincidência, assim como expor o resultado orçamentário desconsiderando as manobras, como forma de concretização da transparência e do controle social, porquanto, aliás, são esses os objetivos principais do parecer prévio que norteia o julgamento político feito pelo Congresso Nacional na qualidade de representante do povo e titular do controle externo da administração pública.
Caso o tribunal entenda, ao revés, que, nas contas de 2014, exclusivamente, as impropriedades caracterizadoras das ditas “pedaladas fiscais” são motivos suficientes para fundamentar a rejeição das contas, o fará como novo entendimento da Corte sobre o assunto.
Com esta mesma conclusão poderá, também, se manifestar pela aprovação das contas com ressalvas, fazendo-a valer como precedente para o futuro (fenômeno chamado de prospective overruling), tendo em vista que a rejeição imediata, sob tais fundamentos, pode colocar em risco a estabilidade das decisões do TCU e fragilizá-las quando entende que em determinadas hipóteses e sob certas circunstâncias, as “pedaladas” guardam gravidade anteriormente não reconhecida.
Doris de Miranda Coutinho é Conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, membro honorário do IAB, Instituto dos Advogados Brasileiros
Artigo publicado no site do jornal O Estado de São Paulo, em 14 de setembro de 2015