Morgana Bellazzi de Carvalho
Continuando a sequência de artigos sobre aniversários, comemoramos os 60 anos da Lei nº 4.320/1964 – Lei Geral de Orçamento, que estatui normas gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, Estados, Municípios e Distrito Federal.
A sexagenária legislação, nasceu em 17 de março de 1964, 143º ano da Independência e 76º ano da República, sob a presidência de João Goulart, numa época em que eram realizados estudos pela ONU, visando a introdução do critério de classificação econômica nos orçamentos, que serviram para impulsionar a implantação, no início dos anos 1960, de experiências reformistas nos orçamentos do Rio Grande do Sul, da Guanabara e de Brasília. Lutava-se por um “orçamento público confiável”, título do livro de Carlos Alberto Longo.
Assim, a Lei nº 4.320/1964, ansiosamente esperada, chegou com o compromisso de consolidar a padronização dos procedimentos orçamentários. Passou pelos anos “trevosos” – adjetivo utilizado por Inaldo da Paixão Santos Araújo quando se refere à ditadura -, e não sucumbiu ao veto nem aos secretismos convenientes dos anos de chumbo. Foi recepcionada pela Constituição Cidadã em 1988, ainda que como lei ordinária, e está em pleno vigor e viço, do mesmo modo que estava no seu jubileu de ouro, lembrado também por Inaldo da Paixão Santos Araújo no seu belíssimo artigo publicado em 17/03/2014.
A importância de celebrar o natalício dessa norma, estatutariamente idosa, reside no fato de que ela representa os primeiros traços de transparência para o controle das contas públicas no Brasil, sendo a transparência uma das variáveis mais relevantes para se aferir a democracia de um governo.
Cronologicamente, na mesma década do século passado em que a aniversariante trazia a transparência para a contabilidade pública, Thomie Ohtake (Kyoto, Japão 1913 – São Paulo–SP, 2015) começava a dominar a técnica e a explorá-la em suas obras. Canetas e pincéis; textos e gravuras são itens sem qualquer relação direta, mas que podem se cruzar, sem se atropelar, ao traduzirem o significado da palavra transparência, revelado na instrução de Jesus aos discípulos: “2 Porque não há nada oculto que não venha a descobrir-se, e nada há escondido que não venha a ser conhecido. 3 Pois o que dissestes às escuras será dito à luz; e o que falastes ao ouvido nos quartos, será publicado em cima dos telhados.” (Lucas, 12, 2-3)
Treze anos depois da publicação da Lei nº 4.320/1964, a Organização Internacional das Entidades Fiscalizadoras Superiores (Intosai), por meio da Declaração de Lima, elencou, entre os três objetivos mais relevantes para o controle financeiro externo, o dever de transparência como forma de compreender os gastos públicos, diminuindo a assimetria de informações entre o povo e o governo na gestão das finanças públicas.
E onze anos depois da Declaração de Lima, nossa Constituição Federal absorveu o dever de transparência por meio do art. 5º, XXXIII, que assegura o direito fundamental à informação (direito de todas as pessoas receberem dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse coletivo, com exceção das situações resguardadas por sigilo). Além disso, a Constituição Federal de 1988 determinou que a lei disciplinasse as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente o acesso a registros administrativos e a informações sobre atos de governo (art. 37, §3 º, II).
Em 2011, foi editada a norma mencionada pelo constituinte, a Lei nº 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI) -, considerada outro avanço na Administração Pública brasileira. Mas não se pode deixar de mencionar antes dela a Lei Complementar nº 101/2000 – Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF) -, que acentuou a transparência nas contas públicas, inicialmente desenhada pela Lei nº 4.320/1964.
Transparência e acesso à informação permitem que se possa: criticar escolhas e decisões adotadas pelos gestores e contribuir com o desempenho de programas governamentais. Em outras palavras, esses pilares conjugados concretizam o que John Rawls chama em sua “Teoria da Justiça” de exercício da razão pública, expressão que substitui a visão mais antiga e formal de democracia como governo por eleição, pela democracia como governo por discussão, modelo defendido por Amartya Sen em sua obra “A ideia de justiça”. Essa substituição é pertinente, porque democracia é mais que o exercício periódico do voto. É a possibilidade de participar, opinar em audiências públicas, manifestar-se nas ouvidorias dos órgãos públicos, avaliar políticas públicas etc.
Então, para que cada vez mais a transparência e o acesso à informação fortaleçam a democracia, aumentem a legitimação das decisões do poder público e favoreçam a governança dos gastos públicos, brindemos à sexagenária Lei nº 4.320/1964, precursora dos contornos da transparência das finanças públicas no Brasil, almejando que tenha vida longa, porque, como disse Almir Pazzianoto, “lei boa é lei velha”!
Morgana Bellazzi de Carvalho – Auditora de Contas Públicas do Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA)