Os desesperados e a democracia
Vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado do Ceará
Caminhando em Denver, no Colorado, em 2018, me surpreendi com o enorme número de usuários de drogas nas ruas. Em 2019, assisti fenômeno semelhante em Dallas, no Texas. Como aquelas cidades tão ricas, repletas de atividades dinâmicas, deixavam tanta gente para trás, vagando nas ruas feito zumbis, algo, infelizmente, comum em muitas grandes cidades brasileiras. Comecei a investigar as causas daquele fenômeno, encontrei algumas explicações esparsas, até que li o sensacional livro, lançado em 2020, “Deaths of despair and the future of capitalism”, de Anne Case e Angus Deaton (ganhador do Prêmio Nobel de economia em 2015), ainda sem tradução para o português, em que os autores traçam um quadro sombrio sobre a situação dos Estados Unidos: brutal aumento de casos de depressão, de suicídios, de alcoolismo e de vício em drogas. A razão principal, concluem os autores, é que parcela substancial da população ficou de fora dos ganhos de produtividade e do crescimento da economia americana nas últimas décadas. Além de grande parte dos negros, historicamente em posição desfavorável, fatia considerável dos brancos pobres que não cursaram uma faculdade também foi excluída e experimentou uma drástica redução de sua renda, assistindo os empregos que tradicionalmente ocupou desaparecerem, ao mesmo tempo em que não estava apta a assumir os novos postos gerados pelo progresso técnico. Pelos cálculos dos autores, são 65 milhões de americanos brancos nessa situação.
A cultura da meritocracia reforça a exclusão: quem não consegue passar em certos exames e ingressar e concluir uma graduação é tido como perdedor, sendo, segundo os autores, desvalorizados e desrespeitados pela sociedade. O resultado é passarem a ver o sistema social como contrários a eles e com isso tornam-se desconfiados das instituições, que não os amparam, ao contrário, os hostilizam. Isso envolve a família, a igreja e o Estado. Resta o desespero, que resvala em vários vícios acima mencionados.
E que implicações políticas esse quadro pode trazer? A história mostra que a falta de esperança é um terreno fértil para aventureiros que anunciam falsas promessas. Tanto Mussolini quanto Hitler ascenderam ao poder pelo voto popular, espalhando esperanças de dias melhores para um povo sofrido, que convivia com os pesados encargos de reparação de guerra e enfrentava elevada inflação, desemprego e fome. O discurso de ódio contra o “sistema”, contra os suspostos inimigos responsáveis pelas mazelas por que passavam e as promessas de redenção apresentavam-se como sedutoras.
O ódio na Alemanha e na Itália levou a ditaduras e a uma nova guerra mundial. A história deve servir de alerta. Como Keynes, que muito criticou os pesados encargos de reparação que os vencedores da I Guerra impuseram aos derrotados, e defendeu profundas reformas sociais, a fim de resguardar a economia de mercado e a democracia liberal, Angus Deaton e Anne Case são favoráveis ao capitalismo, mas apontam a necessidade urgente de reformá-lo. Incluir essas largas parcelas da população que tem sido deixada para trás nos benefícios do progresso técnico é uma necessidade premente.
Embora a ideologia de valorização do mérito, do trabalho duro e da poupança seja importante e constitua a base do próprio capitalismo, tratar os que não conseguem com desrespeito e como perdedores traz consequências nefastas. O aumento da violência urbana, do alcoolismo e dos suicídios é evidente. A serpente não para de pôr seus ovos de movimentos autoritários com promessas de inclusão dos “perdedores”, vítimas, segundo esses discursos, de um sistema corrupto, elitista e excludente por natureza.Há vários exemplos no mundo atual.
O Estado, impulsionado pela sociedade, tem papel decisivo para mudar esse quadro, redistribuindo os ganhos de produtividade e o aumento de riqueza. Uma educação pública, gratuita e de excelente qualidade é parte disso, ao lado de um bom sistema de saúde universal, entre outras providências. Para que a democracia floresça, é fundamental que a vida seja boa para todos. A cultura de super valorização dos bem-sucedidos, dos mais aptos e o desprezo pelos mais fracos e menos aptos e estudados traz riscos para todos.Não repitamos os erros do passado.
*Edilberto Carlos Pontes Lima, doutor em Economia. Autor, entre outros, de Curso de Finanças Públicas, uma abordagem contemporânea (Editora Atlas). Vice-presidente de Auditoria do Instituto Rui Barbosa (IRB) e vice-presidente do TCE-CE