"Pacta sunt servanda"

Estabeleceu-se no mundo jurídico brasileiro uma discussão sobre a possibilidade da Corte da Organização dos Estados Americanos (OEA) poder interceder na decisão do nosso STF sobre o mensalão. Tudo começou com a intenção do deputado Valdemar da Costa Neto (PR-SP), um dos réus, de ir à Corte Interamericana contra o julgamento sob a alegação que não lhe foi garantido o duplo grau de jurisdição. As opiniões divergem, a uma com o argumento de que a Constituição não se subordina a tratados ou pactos internacionais do qual o Brasil seja signatário, a duas que sim, inclusive havendo precedente em caso idêntico ocorrido na Venezuela. Voltaremos ao assunto em outro artigo, contudo, interessa-nos aqui e agora tratar de um fato mais ou menos análogo envolvendo uma servidora pública e o município de Aracaju e que se referia a um conflito de normas, sendo uma oriunda de um pacto internacional e outra da legislação municipal. Era o ano de 2005 e à época, ocupávamos o cargo de Procurador-Geral da Capital. Uma professora, antes do término do estágio probatório, requereu licença para interesse particular em virtude de ter sido aprovada numa seleção promovida pelo Ministério da Educação (MEC) no Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa no Timor Leste. A Procuradoria emitiu parecer opinando pelo deferimento do pedido e pela suspensão do estágio probatório enquanto perdurasse o período de afastamento. Encaminhado o processo à Secretaria Municipal de Educação, a Secretária foi inquirida por ofício do sindicato da categoria que manifestava, em tom de denúncia, a irregularidade do afastamento, tendo, em razão disso, ouvido a Assessoria Jurídica daquela Secretaria a qual manifestou contrariedade ao parecer da Procuradoria, opinando pela falta de respaldo legal ao pleito de afastamento. Diante dessa manifestação, foi solicitada uma reanálise do problema. O núcleo da procuradoria de estudos e pareceres mais uma vez, agora sob um novo ângulo jurídico, ratificou o parecer anterior.

Diante desse quadro, onde dois órgãos emitiam pareceres divergentes sobre um mesmo assunto, o processo voltou para que o Procurador-Geral dirimisse o conflito. De logo, não havia necessidade da servidora requerer a licença, uma vez que havia nos autos ofício da responsável pela execução do Programa Timor Leste e Coordenadora-Geral de Cooperação Internacional da CAPES/Ministério da Educação requerendo a sua liberação. Por outro lado, a professora, para orgulho do magistério aracajuano e sergipano, foi a única conterrânea, dentre 17 (dezessete) mil candidatas, selecionada pelo MEC para colaborar no ensino da língua portuguesa a professores do País-irmão. Todos conhecem a história recente desse País que tenta se firmar no cenário internacional, e o Brasil, na sua política de ajuda aos países de língua portuguesa, não mediu esforços no sentido de cooperar na reconstrução de seu quadro educacional, que se encontrava devastado após longa guerra civil contra a Indonésia, onde 90% das suas escolas foram destruídas e o sistema foi praticamente desmontado. Diga-se que esse ato do Governo Brasileiro consagrou um dos seus princípios constitucionais que o rege nas suas relações internacionais, que é o da “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”. Pois bem, a liberação do membro do magistério em estágio probatório, segundo a legislação municipal, só poderia ocorrer em três hipóteses: 1) por motivo de doença em pessoa da família; 2) para acompanhar cônjuge ou companheiro, que também seja servidor público, civil ou militar, nos termos estabelecidos no Estatuto do Magistério; e 3) para ocupar cargo público eletivo. Numa interpretação restritiva, isolada, o pedido de liberação da professora não teria amparo legal. Acontece que a matéria apresentava outros enfoques como o fato da tarefa a ser executada pela professora no Timor Leste ser precedido de um pacto internacional com texto aprovado pelo Senado Federal.

Feita essa observação, perguntava-se: Um tratado internacional tem força de lei? As normas contidas nos tratados, acordos e pactos internacionais firmadas pelo Brasil são incorporadas ao sistema de direito positivo interno brasileiro? Em caso de conflito de uma norma oriunda de um pacto internacional com outra interna, qual a que deve prevalecer? Às duas primeiras indagações a resposta foi sim. Por quê? Porque é na Constituição da República, conforme lição do Ministro do STF, Celso de Mello, e não na controvérsia doutrinária que antagoniza monistas e dualistas, que se deve buscar a solução normativa para a questão da incorporação dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro. O exame da Constituição permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante Decreto Legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais e a do Presidente da República, que, alem, de poder celebrar esses atos de direito internacional, também dispõe – enquanto Chefe de Estado que é – da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais – superadas as fases prévias da celebração da convenção internacional, de sua aprovação congressual e da ratificação pelo Chefe do Estado – conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos que lhe são inerentes: (a) a promulgação do tratado internacional; (b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano de direito positivo interno. Em outras palavras, cumpridas as etapas referidas, o ato internacional passa a vigorar no sistema jurídico brasileiro.

Finalmente, chegamos à última pergunta, ou seja, quando do conflito de uma norma oriunda de um pacto internacional com outra interna, qual a que deve prevalecer? Vimos que é ponto pacífico a incorporação das normas internacionais oriundas de tratados, atos e acordos ao arcabouço jurídico interno. Sobre o conflito de normas, ouçamos o Supremo Tribunal Federal, na decisão citada anteriormente, “Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade. (…). No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (‘lex posteriori derogat priori’) ou, quando cabível, do critério da especialidade”. Se efetivamente existiu um conflito de normas, em tese, entre o acordo de cooperação educacional firmado pelo Brasil com o Timor Leste e uma Lei Complementar Municipal, o assunto estava resolvido pela tese do Supremo Tribunal Federal, ou seja, pelo critério cronológico, sendo o Acordo Internacional de 2003 (ano em que foi publicado o Decreto Legislativo do Senado) e a Lei Municipal é de 2001. Ai, pois, prevalece o Acordo Internacional, sem maiores discussões. Resultado: a professora foi liberada e foi dar a sua contribuição ao povo do Timor Leste. Era preciso respeitar o brocardo latino pacta sunt servanda, para quem os contratos existem para serem cumpridos pela mesma razão que a lei deve ser obedecida.

Conselheiro Clóvis Barbosa de Melo

TCE-SE

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