*PEC 13/21: mais um golpe na educação

*Artigo publicado no ConJur

Nesta semana houve mobilização de prefeitos das grandes e médias cidades brasileiras, em Brasília, com o intuito de sensibilizar deputados para as pautas de interesse das cidades [1]. Um ponto que une gestores municipais é a aprovação da PEC 13/2021, já aprovada pelo Senado Federal, cujo teor afasta a responsabilidade dos gestores pela não aplicação de percentuais mínimos de gastos em educação em 2020 e 2021, em razão da pandemia [2]. A PEC seria, em divulgação da Frente Nacional de Prefeitos, “uma alternativa temporária, que garante que os cerca de R$ 15 bi não gastos pelos municípios fiquem no ensino” [3].

Há um compromisso constitucional claro com a educação, direito de todos e dever do Estado e da família. Ao visar o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para a cidadania e a qualificação para o trabalho (artigo 205), a educação se qualifica como direito fundamental que, ao mesmo tempo, é fundamento (em razão de sua ligação com a dignidade da pessoa humana) e objetivo da República (sendo essencial para construir uma sociedade livre, justa e solidária e também para diminuir as desigualdades sociais). Por essa razão — no que interessa ao ponto específico deste artigo — há um sistema constitucional de garantia de financiamento e de utilização de recursos em manutenção e desenvolvimento do ensino. Prescreve o artigo 212 da Constituição Federal:

“Artigo 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”.

A relevância da regra do dispositivo é tamanha que seu descumprimento pode ensejar a mais drástica medida de mitigação do federalismo: a intervenção de um ente em outro [4].

Voltemos à questão concreta. A suposta justificativa para a PEC seria a queda na arrecadação dos entes, além do necessário aumento dos gastos com saúde em razão da pandemia e a diminuição dos gastos correntes com educação em razão da suspensão de aulas presenciais e do fechamento de escolas. Os argumentos não se sustentam. A queda na arrecadação não é motivo para se pensar em queda nos gastos com educação, na medida em que o valor monetário que deve ser gasto é proporcional à receita (em outras palavras, se cai a arrecadação, cai o valor nominal resultado da aplicação da proporção). Ainda assim, notadamente em razão da atuação da União no chamado “socorro fiscal”, deve ser verificado em cada caso se existiu, de fato, queda na receita. Nos municípios do estado de Goiás, por exemplo, o Tribunal de Contas dos Municípios verificou que, no período de janeiro a maio de 2020, comparando com o mesmo período em 2019 houve “aumento da receita total realizada informada para a maioria (78%) dos municípios que compõem a amostra” [5]. O mesmo argumento pode ser invocado com relação ao aumento dos gastos com saúde — além da importância de verificação concreta de cada situação, houve transferências vultuosas de recursos vinculados para tais ações ligadas à pandemia.

A diminuição dos gastos correntes com educação em razão do fechamento das escolas possui, em abstrato, plausibilidade. Em princípio, com o fechamento de escolas, despesas com energia elétrica, água, materiais de expediente e serviços terceirizados, por exemplo, naturalmente tendem a ter diminuído. Apesar disso, a ocasião do fechamento de escolas e diminuição de gastos correntes deveria ter sido utilizada, inicialmente, para enfrentamento de demandas básicas de infraestrutura escolar. Em relevante ação destinada a incentivar o controle da educação pública, o Instituto Rui Barbosa apurou dados do Censo Escolar para demonstrar, por exemplo, que existem escolas sem banheiro, esgoto, água potável ou energia.

No contexto de uma educação realizada com escolas fechadas há mais de um ano, seria de se exigir também investimentos em conectividade, visando garantir o pleno acesso de alunos e professores à internet. A falta de conectividade, além de aprofundar a já gritante desigualdade, ainda tende a agravar o abandono escolar [6]. No final de mais um ano de pandemia, a maioria das escolas municipais está adotando estratégias que envolvem aulas presenciais com aulas remotas, exigindo que alunos e professores possuam acesso a equipamentos, rede e pacote de dados para conexão [7].

Importante relembrar que o Plano Nacional de Educação (PNE) estabeleceu como estratégias para a meta de fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a incrementar médias nacionais para o Ideb (Meta 7):

“[…] 7.15) universalizar, até o quinto ano de vigência deste PNE, o acesso à rede mundial de computadores em banda larga de alta velocidade e triplicar, até o final da década, a relação computador/aluno (a) nas escolas da rede pública de educação básica, promovendo a utilização pedagógica das tecnologias da informação e da comunicação;
(…)
7.20) prover equipamentos e recursos tecnológicos digitais para a utilização pedagógica no ambiente escolar a todas as escolas públicas da educação básica, criando, inclusive, mecanismos para implementação das condições necessárias para a universalização das bibliotecas nas instituições educacionais, com acesso a redes digitais de computadores, inclusive a internet”.

A data prevista no PNE para o atingimento da estratégia de universalizar banda larga de alta velocidade nas escolas (7.15) remonta a junho de 2019. Levantamento feito pelo Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa, com base nos dados extraídos do Censo Escolar 2020, apontou que 25% das escolas não tem qualquer acesso à internet (afetando mais de 2,7 milhões de estudantes das redes estaduais e municipais de ensino) [8]. Reconhecendo essa mora e a importância da conectividade para a melhoria da educação, na análise do edital do leilão do 5G o TCU recomendou à Anatel e ao Ministério das Comunicações a inclusão de compromissos para tornar efetiva a obrigação da conectividade das escolas públicas de educação básica, com a qualidade e velocidade necessárias para o uso pedagógico das tecnologias [9].

A gravidade do quadro inspirou a edição de recomendação aos Tribunais de Contas para incrementar as ações de controle da educação. Dentre as recomendações assinadas pelas entidades associativas e científicas ligadas ao sistema de controle externo [10], destaco as seguintes:

“[…] 2.2. Verifiquem o comportamento da despesa total liquidada na função educação em 2020 em relação ao ano de 2019, buscando identificar se houve acréscimo ou decréscimo na aplicação de recursos nessa política pública;
2.3. Identifiquem situações em que Municípios, embora experimentando aumento de receitas, não aportaram os recursos necessários na infraestrutura das escolas públicas, especialmente os relacionados com conectividade, visando a garantir o pleno acesso de alunos e professores à internet, sendo que as insuficiências a respeito poderão ser identificadas no Censo Escolar 2020, além de eventuais outras fontes de informação (a propósito, vide portal do IRB);

2.4. Utilizem, quando constatada a insuficiência de investimentos na manutenção e desenvolvimento do ensino, os meios disponíveis, tais como auditorias, inspeções, termos de ajustamento de gestão e solicitação de apresentação de planos de ação pelos gestores, observados, se for o caso, critérios de risco, relevância e materialidade, para obter compromissos de aplicação de recursos, especialmente quanto àqueles entes federativos que não atingiram, em 2020, o mínimo constitucional previsto no artigo 212″.

Percebe-se que, no âmbito do controle realizado pelos Tribunais de Contas, é possível pensar em alternativas que não impliquem em juízo negativo apriorístico nas contas em razão do eventual descumprimento do artigo 212 da Constituição, com a necessária consideração dos “obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (artigo 22 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Em outras palavras, existirão situações nas quais poderá estar justificada a diminuição dos gastos em manutenção em desenvolvimento do ensino, mas não há presunção desse fato. Nos termos da própria Lindb, é possível pensar na celebração de compromisso, com o eventual estabelecimento de regime de transição, para que os recursos eventualmente não aplicados em um exercício possam ser compensados nos exercícios seguintes [11]. Um dos instrumentos possíveis para esse compromisso é o termo de ajustamento de gestão, figura já conhecida no âmbito do controle externo [12].

O que não se pode admitir é um amplo e irrestrito “libera geral”, independente do nome utilizado (imunidade, perdão, indulto, remissão, anistia, etc), que simplesmente exonere o dever de verificar cada situação concreta à luz da respectiva realidade. É isso o que a PEC 13/21 consagra: uma absolvição prévia desconectada da realidade social e jurídica e dos deveres que o Estado tem com a educação. Trata-se de um desestímulo ao planejamento e, principalmente, de um atentado à esperança — que já anda escassa — de melhoria da educação brasileira.


[1] https://fnp.org.br/noticias/item/2747-fnp-reune-prefeitos-no-congresso-nacional-para-chamar-atencao-para-pautas-de-me%E2%80%A6

[2] A PEC nº 13/2021 acrescenta o artigo 115 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para determinar que os Estados o Distrito Federal e os Municípios, bem como seus agentes, não poderão ser responsabilizados pelo descumprimento, no exercício financeiro de 2020, do disposto no caput do artigo 212 da Constituição Federal.

[3] https://fnp.org.br/noticias/item/2747-fnp-reune-prefeitos-no-congresso-nacional-para-chamar-atencao-para-pautas-de-me%E2%80%A6

[4] “Artigo 35. O Estado não intervirá em seus municípios, nem a União nos municípios localizados em Território Federal, exceto quando: […] III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde”. Em sentido semelhante dispõe o artigo 34, VII, “e”.

[5] https://www.tcmgo.tc.br/site/wp-content/uploads/2020/08/tcmgo-estudosobreasreceitasmunicipaisemtemposdecovid19_andamento_6.pdf

[6] https://novaescola.org.br/conteudo/20301/sem-conexao-a-internet-como-fica-a-educacao-em-2021?utm_source=Artigo+Nova+Escola&utm_medium=Site+Nova+Escola&utm_campaign=Arigo+Nova+Escola+Setembro

[7] Pesquisa recente da Undime detalha esse cenário: http://undime.org.br/noticia/07-12-2021-12-41-maioria-das-escolas-municipais-esta-adotando-estrategias-combinadas-com-aulas-remotas-e-presenciais-revela-pesquisa-da-undime-com-apoio-do-unicef-e-itau-social

[8] https://irbcontas.org.br/jornal-hoje-destaca-levantamento-do-cte-irb-sobre-situacao-das-escolas-publicas/?utm_source=Artigo+Nova+Escola&utm_medium=Site+Nova+Escola&utm_campaign=Arigo+Nova+Escola+Setembro

[9] Acórdão nº 2.032/21 — plenário, relator ministro Raimundo Carreiro

[10] Nota Recomendatória Conjunta Atricon/IRB/Abracom/CNPTC/Audicon n° 02/2021, disponível em file:///C:/Users/Cons.%20Fabr%C3%ADcio/Downloads/Nota-Recomendatoria-Conjunta-no-02-2021.pdf

[11] https://www.conjur.com.br/2018-jun-07/interesse-publico-lindb-consagra-controle-consensual-administracao-publica

[12] Sobre o assunto, confira-se FERRAZ, Luciano. Termo de Ajustamento de Gestão (TAG): do sonho à realidade. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte, Ano 8, nº 31, out/dez. 2010.