Entre as muitas ironias de George Orwell, algumas são especialmente sagazes. Uma delas, era o que chamou – na versão original em inglês – de “Newspeak” – traduzido na versão brasileira para “Novilíngua”. Basicamente, mostrava que os termos utilizados pelo governo eram o contrário do que de fato queriam dizer. Assim é que o Ministério da Liberdade (Ministry of Truth – Minitrue) era o encarregado de restringi-la. Ministério da Paz era o que promovia a guerra. O Ministério do Amor “era o mais assustador”.
É um característica muito comum de quem está no poder querer ocultar suas verdadeiras intenções; há vários casos recentes na história brasileira. Quando, por exemplo, se desvincularam 20% do orçamento da União, no início do Plano Real, batizou-se de Fundo Social de Emergência. Ora, o dinheiro era retirado das fontes vinculadas às áreas sociais, saúde, assistência e previdência, sendo, portanto, o oposto do que o nome indicava. Em vez disso, o FSE era utilizado para gerar superávits primários. Na reforma da previdência de 2003, o fenômeno se repetiu com força. A reforma era basicamente do regime dos servidores públicos, mas muitos apoiadores só se referiam à reforma do regime geral, que recebeu mudanças muito pontuais.
Assim é que a chamada PEC do Pacto Federativo (PEC 188) se situa. Mais um caso de Newspeak. Mais Brasil, menos Brasília no discurso e na nomenclatura. Na prática, no texto enviado, é o oposto. É uma PEC centralizadora, com elementos de Estado Unitário.
Analisemos mais de perto os dispositivos mais relevantes. Altera-se o artigo 20 da CF para incluir 2 novos parágrafos. O parágrafo terceiro estabelece que a União transferirá – na forma da lei – parte dos recursos que lhes são próprios provenientes da participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais (royalties) para Estados, Municípios e Distrito Federal. O parágrafo seguinte veda a utilização de tais recursos em pessoal (ativo, inativo ou pensionista). É o único dispositivo descentralizador da PEC, mesmo assim, remetendo à lei. A partir daí, só centralização.
Centraliza, por exemplo, a interpretação das normas de finanças públicas. Faz isso de diversas maneiras, principalmente ao criar um efeito vinculante para decisões do Tribunal de Contas União. Ou seja, um órgão exclusivamente federal (o TCU) vai impor suas decisões aos demais entes federados (Estados e Municípios).
Os que a defendem insistem em críticas de que os tribunais de contas estaduais embarcaram em interpretações muito flexíveis em alguns casos, contribuindo para o desequilíbrio. Os liberais brasileiros costumam exaltar as virtudes dos Estados Unidos, mas parecem esquecer que a descentralização é a tônica naquele país. Enquanto lá cada Estado tem um direito penal e um direito civil próprio, por exemplo, aqui se considera o fim do mundo um Tribunal de Contas apresentar interpretação diferente de outro sobre determinado artigo da Lei de Responsabilidade Fiscal, fazendo-se urgente a presença de um órgão uniformizador. Não é esse o espírito do federalismo.
Não deixa ser inusitado, contudo, o fato de os maiores desequilíbrios fiscais brasileiros estarem na União, segundo dados do Banco Central. Em 2019, por exemplo, enquanto Estados e Municípios, no conjunto, registraram superávit primário de mais de R$ 15 bilhões, o governo federal teve o sexto ano seguido de expressivo déficit primário, quase R$ 90 bilhões. Quem tem déficit vai dar lições e ditar regras para quem apresenta superávit?
Aqui, cabe uma reflexão: até onde os Tribunais de Contas são responsáveis pelo equilíbrio macro fiscal? Eles não participam do processo de formação das despesas. Quando o Governador de Minas Gerais recentemente decidiu aumentar os soldos dos policiais militares e a Assembleia estendeu para outras categorias de servidores, o que o TCE de Minas Gerais poderia fazer? A Constituição não lhe conferiu nenhum poder de veto. A decisão passa exclusivamente pelos órgãos políticos. Assim como o TCU não pode ser responsabilizado pelos seis anos de déficit federal, tampouco os TCEs são os culpados pelos desequilíbrios em alguns Estados.
Os Tribunais de Contas foram criados para realizar auditorias (inclusive de desempenho) e para observar se as despesas foram realizadas em conformidade com a legislação. Não foram construídos para barrar despesas feitas com autorização legislativa. O TCU assistiu impotente toda a degradação das finanças públicas federais a partir de 2013. Em apenas um ano emitiu parecer pela rejeição das contas da presidente da República, assim mesmo por um motivo muito específico, as chamadas pedaladas fiscais, e não pelo quadro global de déficits sucessivos.
Claro que a busca do equilíbrio fiscal intertemporal é fundamental. Certamente há muito para aperfeiçoar no sistema de controle fiscal brasileiro. Passos importantes foram dados, como a emenda de teto dos gastos, a reforma da previdência, entre outros. A própria PEC 188 traz providências importantes como a obrigatoriedade de se observar o equilíbrio orçamentário intergeracional quando do atendimento dos direitos sociais da atual geração. Há também Estados e Municípios fazendo um bom trabalho nesse campo, embora haja alguns que desandaram, como o noticiário fartamente tem mostrado.
Mas não se corrige o errado, acabando o que é correto. Um diagnóstico acertado é essencial. Não é centralizando decisões e enfraquecendo a autonomia dos entes federados, princípio basilar da Constituição brasileira, que se vai avançar.
Federação exige diálogo permanente, coordenação e acordos, não uma rígida hierarquia. Não é transformando Estados e Municípios em meros departamentos da União, sujeitando-os a decisões de órgãos exclusivamente federais, que se vai garantir o equilíbrio orçamentário. Ao contrário, os problemas tendem a piorar na medida em que se aplica o mesmo remédio para situações díspares em uma federação assimétrica como a brasileira.
Edilberto Carlos Pontes Lima, é Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Ceará – TCE-CE