Recomendações do Ministério Público e o VAR – artigo publicado no CONJUR
Fabrício Motta, Conselheiro do TCM-GO
Um dos grandes constrangimentos que o excesso de tempo em uma mesma profissão ou ambiente traz é a desatualização dos exemplos concebidos para explicar situações variadas. No meu longo caminhar no controle da Administração – fui Técnico do Tribunal de Contas da União, Procurador do Ministério Público de Contas e agora Conselheiro do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás – tenho testemunhado as muitas alterações pelas quais a atividade de controle tem passado, o que me impõe sempre o dever de atualizar exemplos e comparações utilizados em aulas, cursos e exposições não somente para não parecer antiquado, mas sobretudo para que consiga ser realmente compreendido.
Sempre comparei, por exemplo, o controle a posteriori com o antigo “tira-teima”[1] do noticiário esportivo de futebol ou então com o comentário preciso do Arnaldo Cezar Coelho a nos confortar com a expressão “a regra é clara”. Arnaldo, genial precursor dos comentaristas de arbitragem, invariavelmente reexaminava os lances polêmicos com ajuda de algum recurso da tecnologia, na tranquilidade da cabine de transmissão ou no conforto de um estúdio televisivo, e dava o vaticínio a respeito da interpretação do juiz na aplicação das regras de futebol, sobretudo na difícil regra do impedimento. O juiz interpretava (ainda interpreta) as regras muitas vezes premido pelo calor, cansaço físico, pressão dos jogadores e da torcida; o comentarista, ao seu turno, podia olhar a cena várias vezes, pensar, repensar e então lançar a interpretação que lhe parecia a mais correta.
O árbitro de vídeo, conhecido pela singela sigla “VAR”, mudou o cenário. O assistente de vídeo auxilia o árbitro em suas decisões; procura detectar erros claros e óbvios em situações que possam modificar o resultado de um jogo. Em tese, o VAR permitiria trazer segurança absoluta na aplicação das regras – o juiz teria os mesmos instrumentos do Arnaldo Cezar Coelho e, com isso, aplicaria as regras com maior fidedignidade. Ocorre que o VAR é operado por pessoas, organizadas em uma equipe que verifica as imagens em uma cabine isolada. Essa equipe pode chamar o árbitro para olhar as imagens quando entender que há alguma situação que justifique sua intervenção – posição de impedimento na jogada de criação do gol; falta com violência, etc. Pois imagine que você é o árbitro de um jogo importante e, no calor de uma situação, premido pela dúvida, recebe o alerta de uma equipe que conhece muito bem as regras e que está analisando imagens com equipamentos de tecnologia. Essa equipe o chamou porque viu algo que entende que deva ser objeto de sua atenção, com relação ao descumprimento de alguma regra. Você, como árbitro, irá olhar as imagens com cabeça, mente e coração abertos ou já irá com um viés (mecanismo mental que viola alguma racionalidade, distorcendo julgamentos) de que há algo errado?
Esse exercício de imaginação pode ser utilizado para ilustrar a atividade de controle, em sentido amplo. As recomendações, em especial, talvez possam se aproveitar dessa imagem para compreensão do processo decisório.
A Constituição da República inclui dentre as funções institucionais do Ministério Público a de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia (Art. 129, II). Regulamentando aspectos do dispositivo, a Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) atribui ao Ministério Público a competência para expedir recomendações, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito (art. 27, parágrafo único, inciso IV). A LC 75/93, que dispõe sobre a organização do Ministério Público da União, estatui que compete ao MPU “expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis” (art.6º, XX).
A Resolução do CNMP nº 164/17 esclarece o conceito de recomendação:
“Art. 1º A recomendação é instrumento de atuação extrajudicial do Ministério Público por intermédio do qual este expõe, em ato formal, razões fáticas e jurídicas sobre determinada questão, com o objetivo de persuadir o destinatário a praticar ou deixar de praticar determinados atos em benefício da melhoria dos serviços públicos e de relevância pública ou do respeito aos interesses, direitos e bens defendidos pela instituição, atuando, assim, como instrumento de prevenção de responsabilidades ou correção de condutas.
Parágrafo único. Por depender do convencimento decorrente de sua fundamentação para ser atendida e, assim, alcançar sua plena eficácia, a recomendação não tem caráter coercitivo”.
Esquecendo a disciplina normativa infraconstitucional referida, somente com fundamento na Constituição já seria possível sustentar a competência do Ministério Público para expedir recomendações tendo em mente o cenário de uma Administração Pública consensual, pautada em um controle que não só reprima o administrador público como o “estimule a tomar decisões acertadas e criativas, desde que voltadas para os interesses da sociedade, sem qualquer menoscabo ao núcleo essencial dos direitos fundamentais”.[2] Trata-se de buscar uma nova forma de agir para “priorizar a precisa e customizada resolução não adversarial e cooperativa, em lugar da perpetuação deletéria de processos”, na lição de Juarez Freitas.[3]
Enxergo na recomendação dois grandes e distintos grupos de possibilidades de utilização. O primeiro grupo de situações envolveria nulidades, ofensas graves ao ordenamento jurídico, que poderiam ser objeto de recomendação com o intuito de estimular a autotutela (anulação pela própria autoridade) sem a necessidade de recurso ao Judiciário, por imperativo sobretudo de tempo. Nesses casos, a recomendação objetivaria tão somente estimular a autoridade a adotar medidas para restaurar a legalidade, não sendo substitutiva da aplicação de eventuais sanções legais. Encaixam-se nesse grupo situações que configuram desobediência a regras, por exemplo, causando ofensa detectável sem grandes controvérsias ao ordenamento jurídico. O segundo grupo é composto por situações nas quais não há propriamente ilegalidade, mas possibilidade de divergência de interpretação das normas que poderia levar a algum dano – material ou jurídico – ao interesse público. Trata-se daquelas situações regidas por normas de textura mais aberta, que muitas vezes identificam os fins, mas não os meios para atendimento do bem jurídico tutelado. Nesses casos, a recomendação objetiva propriamente convencer, de forma fundamentada, de que a visão do Ministério Público é a mais adequada para a cura dos interesses que lhe competem proteger.
Os dois grandes grupos ou categorias possuem em comum a ausência de caráter coercitivo; entretanto, mesmo o cumprimento da recomendação relativa a situações do primeiro grupo (ilegalidade por desobediência a regras) poderá ensejar a adoção dos procedimentos cabíveis em todas as esferas de responsabilização, ainda que se admita que o atendimento do agente possa ser considerado como atenuante.
O problema ocorre quando a recomendação versa sobre o exercício de competências estabelecidas por normas de textura aberta, ampla, muitas vezes positivadas sob a forma de princípios jurídicos. Nesses casos, em atendimento à distribuição constitucional de competências, é dever dos órgãos de controle respeitar a esfera de atuações delimitada para o gestor público. O cenário se tornou mais claro com a Lei 13.655/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. As novas regras da LINDB se dirigem inicialmente ao gestor público, posteriormente aos controladores, no exercício de suas atribuições de fiscalização, e finalmente ao judiciário, se provocado, diante de questões não solucionadas pelas esferas iniciais.
Como já escrevi neste mesmo espaço[4], na esfera administrativa, inicialmente, “não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (art.20). As decisões administrativas deverão avaliar concretamente as eventuais soluções possíveis, notadamente na interpretação de conceitos abertos, considerando os prós e contras da adoção de cada qual. O consequencialismo não implica desconsideração da legalidade estrita – ao contrário, é justamente no plano das soluções admitidas pelo ordenamento que a decisão deverá se inserir.
O foco do controle, como regra posterior, recairá sobre todo o processo decisório, cabendo-lhe avaliar as medidas consideradas como necessárias e adequadas, diante das alternativas apresentadas na esfera administrativa. A análise das alternativas é posta no âmbito de verificação da necessidade e adequação das medidas tomadas pelo gestor, à luz do caso concreto. A atividade de controle, por outro lado, somente poderá examinar as eventuais alternativas que se apresentavam ao gestor, por se tratar de fiscalização de conformidade – cabe ao gestor identificar as alternativas, sopesá-las e decidir; ao controle cabe a posterior verificação da decisão diante do cenário posto. O controle deverá necessariamente considerar “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (art.22).
Lembremo-nos do Arnaldo César Coelho e do VAR: o controle não pode desconsiderar as circunstâncias concretas da decisão do gestor, devendo verificar a existência de espaços decisórios conformados pelo ordenamento e como foram utilizados. O que não se pode admitir é a mera substituição de opinião por diferença de interpretação, quando ambas forem juridicamente sustentáveis. Trata-se do famoso ditado “substituir a vontade do administrador pela vontade do controlador”[5].
Nessas situações, é preciso conhecer a racionalidade desenvolvida pelo controlador em seu processo interpretativo, as opções que foram feitas e os resultados que se espera para, posteriormente, estabelecer a dialética. O diálogo, no caso, deve ser feito após esse processo de conhecimento do juízo do gestor – o gestor deve buscar a melhor solução possível, mas o controle deve contentar-se com uma solução razoável, notadamente para fins de responsabilização[6]. O Ministério Público possui assessoria técnica de alto nível em diversas áreas, e é bom que seja assim. Os entendimentos dessa assessoria devem, sob o comando do Promotor responsável, dialogar com os entendimentos do gestor. Convém lembrar que intervenções pontuais injustificadas podem desarticular toda uma política pública concebida, de forma planejada, com estratégia para atingir objetivos determinados. Relembro ainda que situações complexas comumente estão sob avaliação e controle de distintos órgãos do Ministério Público, com diferentes objetivos, como proteção do direito à saúde e proteção do patrimônio público, por exemplo. Nesses casos, o princípio da unidade é incompatível com uma instituição bidirecional, não podendo o gestor público ficar à mercê de recomendações diferentes sobre o mesmo assunto.
Reconhecendo os diferentes papéis desempenhados pelas instituições e os legítimos espaços de atuação desenhados pela Constituição, proponho mudar o tradicional grand finale das recomendações relativas à última situação tratada. No lugar de fórmulas como “esclareço que o eventual descumprimento da presente recomendação ensejará a adoção de medidas administrativas, cíveis e penais para responsabilização”, o parágrafo conclusivo poderia ser: “Caso V. Exa. opte pelo não atendimento ou atendimento parcial das recomendações, solicito o encaminhamento de justificativa técnico-jurídica consistente no tocante às consequências práticas dessa decisão, aos obstáculos e dificuldades reais identificadas e às exigências das políticas públicas a seu cargo”. Recomendação não pode soar como se ameaça fosse.
Talvez o saudoso Arnaldo Cezar Coelho concorde que a regra nem sempre é clara. Quando não for, trocar uma interpretação razoável do juiz pela interpretação da equipe do VAR só servirá para atrapalhar o jogo.
[1] https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-funciona-o-tira-teima/[2] FERRAZ, Luciano. Controle consensual da Administração Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2019. [3] FREITAS, Juarez. Direito administrativo não adversarial: a prioritária solução consensual de conflitos, Revista de Direito Administrativo, Belo Horizonte, ano 2017, n. 276, set./dez. 2017. [4] https://www.conjur.com.br/2018-jun-14/interesse-publico-alteracoes-lindb-valem-todos-nao-controle [5] Como escreveu Pedro Serrano, em artigo recentíssimo: “Contudo, muitas das recomendações pretendem se imiscuir nesse espaço reservado ao administrador público, o espaço da tomada de decisão. E, tem sido comum a utilização, pelo Ministério Público, de ações de improbidade administrativa, quando suas recomendações não são seguidas pelos gestores públicos. Para alguns, não seria recomendação, mas sim, determinação”. https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/ministerio-publico-recomendacao-ou-determinacao/ [6] Destaco, na Resolução 164/17 do CNMP: “Art. 10. O órgão do Ministério Público poderá requisitar, em prazo razoável, resposta por escrito sobre o atendimento ou não da recomendação, bem como instar os destinatários a respondê-la de modo fundamentado. Parágrafo único. Havendo resposta fundamentada de não atendimento, ainda que não requisitada, impõe-se ao órgão do Ministério Público que expediu a recomendação apreciá-la fundamentadamente”.
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