Valdecir Pascoal
As decisões dos Tribunais de Contas emanam, em regra, dos seus órgãos colegiados: as Câmaras e o Plenário. Em essência, o julgamento da gestão pública consiste em valorar – a partir de dados e argumentos trazidos aos processos de contas pela auditoria, o MP de Contas e os gestores – se os atos de governo e de gestão cumpriram os ditames constitucionais e legais que regem a administração pública. Ante a independência e o livre convencimento de cada julgador, é natural a existência de tensões decorrentes das discussões e de pontos de vista divergentes. Essa dialética, no entanto, é fundamental e contribui para a qualidade do julgamento.
Muitos dos que desconhecem a natureza desse processo costumam criticar a existência de votos dissidentes e até antagônicos. Alegam que, em se tratando de “contas”, o julgamento deveria ser cartesiano e uniforme. Esquecem que, neste caso, o conceito de contas transcende o aspecto contábil e engloba todo o conjunto de atos de governo e de gestão, como licitações, contratos, admissões de pessoal, previdência, renúncia e limites fiscais… Ignoram, ademais, e sobretudo, que a interpretação e a aplicação das leis aos casos concretos não são um silogismo simples, uma operação matemática e que, amiúde, ressalvando as teratologias e os “terraplanismos jurídicos”, podem comportar, validamente, um mosaico de soluções razoáveis. O Direito, embora ciência, não é exata e, sendo também linguagem, clama pelo uso de métodos da hermenêutica (gramatical, lógico, sistemático, histórico e finalístico). Essa autonomia valorativa, contudo, não desobriga o julgador de buscar consensos, de primar pela segurança jurídica e de estar atento ao princípio da colegialidade.
Trocando em miúdos, não se pode falar em verdade absoluta em julgamentos que têm por base a aplicação de normas jurídicas, sem olvidar que a própria compreensão dos fatos pelo julgador também repercute no veredicto. A arte de julgar exige conhecimento, honestidade e resiliência, mas, também, humildade intelectual e tolerância para respeitar e refletir sobre outras verdades. Fernando Pessoa, no seu “Livro do Desassossego”, e Drummond, no poema “Verdade”, desnudam magistralmente a existência das múltiplas verdades, das verdades sem dono. O compositor Luiz Ramalho, imortalizado em talentos como o de Elba, lembra-nos que “Um veio d’água na serra / É um olho d’água / Um veio d’água no rosto / É uma mágoa”.
P.S.: Para os mais cartesianos, recomendo a leitura de um clássico: “O Caso dos Exploradores de Caverna”, de Lon L. Fuller.
Valdecir Pascoal – é Conselheiro e Diretor da Escola do TCE-PE