Naluh Golveia
O sistema de controle público no Brasil está estruturado para garantir a legalidade, a eficiência e a transparência na gestão dos recursos públicos, conforme previsto na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000). Os órgãos de controle externo, como os Tribunais de Contas e o Ministério Público, exercem função essencial ao fiscalizar a execução orçamentária e zelar pela correta aplicação dos recursos públicos, com base nos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Entretanto, o rigor técnico dos instrumentos de controle tradicional, ancorado na análise contábil e financeira, revela-se insuficiente para abarcar a complexidade das demandas sociais, especialmente em contextos marcados por profundas desigualdades históricas, como é o caso do Acre.
Dados do Anuário do Ministério Público do Acre (2024) e do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) revelam um panorama alarmante: em 2023, o estado registrou 215 Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), sendo 73% das vítimas pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, 9% indígenas e 8% mulheres. Os agressores são majoritariamente homens (96%). A população carcerária reflete esse abismo social, com 87% das pessoas presas também pretas ou pardas. Os crimes contra mulheres aumentaram, com 15 homicídios femininos — 10 deles feminicídios consumados — conferindo ao Acre a terceira maior taxa do país. Os feminicídios tentados cresceram 144% entre 2022 e 2023, e as lesões corporais dolosas contra mulheres aumentaram 35%, liderando o crescimento nacional. A violência sexual contra vulneráveis posicionou o estado como o segundo do país em taxa de estupros contra vulneráveis, com 728 ocorrências. O índice de suicídio aumentou 44,3% no ano, com ênfase entre jovens mulheres preta e pardas — indicativo de uma crise que ultrapassa o campo da segurança pública e aponta para a ineficiência institucional na proteção social.
Nesse cenário, a contabilidade pública, ancorada no princípio das partidas dobradas, demonstra seus limites: a conta não fecha. O passivo social — invisibilizado nos números dos balanços — acumula-se como dívida histórica. Por isso, há de se pensar numa ressignificação do conceito de “conta pública”. É necessário que a análise orçamentária incorpore os impactos sociais das políticas, com atenção à sua efetividade no enfrentamento das desigualdades estruturais. A superação da crise de efetividade não se dará apenas por controle formal, mas por um controle cidadão, sensível às violências e violações que atravessam o tecido social.
Essa transformação não é apenas conceitual, mas de prática institucional. Requer que o controle externo avance para além da importante aferição da legalidade, assumindo uma postura dialógica e corresponsável, comprometida com a indução de mudanças concretas. Incorporar indicadores sociais e de direitos humanos ao controle orçamentário é um passo fundamental para qualificar a fiscalização e garantir respostas efetivas à sociedade.
Nesse sentido, o Tribunal de Contas do Estado do Acre (TCE-AC), alinhado com essa urgência sociais, promoveu nessa sexta-feira (06/06/2025), o I Círculo de Consensualismo sobre Políticas Públicas Sensíveis ao Gênero, Raça e Etnia, onde recebeu representantes dos poderes e instituições públicas, bem como integrantes da sociedade civil organizada e população engajada nas temáticas, para discutir uma estratégia de controle externo sensível ao gênero, raça e etnia. Essa atividade faz parte do processo de revisão do planejamento estratégico 2025-2026, sob a liderança da Conselheira Dulcinéia Benício de Araújo. É preciso ouvir, para qualificar melhor nossas ações. Esperamos que esse Círculo, orientado pelos princípios de uma governança dialógica, da corresponsabilidade institucional e da função pedagógica do controle, represente um marco, não apenas na ressignificação do conceito de contas públicas, mas na emergência de uma nova prática — um controle que afira não apenas despesas e receitas, mas que contabilize também os direitos e o dever de proteger e resguardar vidas, sobretudo dos mais vulnerabilizados socialmente.
O Círculo de Consensualismo de Políticas Públicas Sensíveis ao Gênero, Raça e Etnia é uma experiência institucional de diálogo estruturado e democrático, promovida pelo TCE-AC, que reúne agentes públicos, gestores(as) e servidores(as) jurisdicionados para a escuta qualificada e a construção colaborativa de soluções voltadas à superação de barreiras estruturais que comprometem a efetividade das políticas públicas interseccionais. Com foco em políticas de médio e longo prazos — uma vez que as Mesas Técnicas de Consensualismo atuam sobre problemas pontuais, emergenciais e de curto prazo —, a iniciativa fortalece a governança pública sensível aos marcadores de vulnerabilidade, consolidando-se como uma inovação no controle externo ao articular pedagogia institucional, visão sistêmica e compromisso social.
Naluh Golveia é conselheira do TCE-AC