Valdecir Pascoal
Muitos me chamam de prudência, temperança, comedimento, sabedoria, cautela, cuidado, sobriedade, equilíbrio, autocontrole, sensatez.
O fato é que venho de muito longe. Sou reverenciada como uma das maiores virtudes humanas por pensadores e artistas desde a Antiguidade. No Oráculo de Apolo, em Delfos, estou descrita na máxima socrática “Nada em excesso”, ao lado de outra não menos importante: “Conhece-te a ti mesmo”. Na Bíblia, apareço com realce em muitas passagens, como no belíssimo Livro da Sabedoria: “E se alguém ama a justiça, saiba que as virtudes são frutos da Sabedoria: ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a fortaleza, que são os bens mais úteis na vida”. Em Siena, a “Alegoria do Bom Governo”, de Ambrogio Lorenzetti (1337), retrata, ao lado do justo e sábio Rei, as melhores virtudes. À sua esquerda, a Magnanimidade, a Temperança e a Justiça Divina; à direita, a Prudência, a Fortaleza e a Paz. Acima dele, pairam a Fé, a Caridade e a Esperança. Detalhe: a Justiça Terrena está representada numa cadeira larga mais à direita do Rei. Acima dela, a Sabedoria, com um livro aberto nas mãos; abaixo, a Concórdia segurando a corda da amizade (ver a pintura que ilustra este texto).
Afirmo, contudo, com lamento, que os últimos tempos – marcados pelo extremismo no debate de assuntos públicos e das relações pessoais – vêm sendo bem difíceis para que eu cumpra os meus propósitos. E olhe que, há poucos anos, eu me via de vento em popa, muito à vontade, celebrando o fim da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlim, os avanços do Estado laico, do Bem-Estar Social e do Estado Democrático de Direito em muitos países. O renomado professor de Harvard, Steven Pinker, chega a retratar, a partir de dados irrefutáveis, esse contexto de progresso da humanidade no seu livro “O Novo Iluminismo”. Vale a leitura. O próprio surgimento da Internet e das Redes Sociais, em meados dos anos 90, parecia prenunciar uma nova oportunidade para mim e para o avanço civilizatório, a partir da possibilidade de conquistarmos relações mais harmoniosas e democráticas entre pessoas, instituições e países.
Ledo engano. O que mais se vê nos dias de hoje é a intolerância, os discursos de ódio, os diálogos interditados, os cancelamentos, o surgimento de novas guerras, a disseminação de notícias falsas e de teorias da conspiração por meio das mídias digitais, tudo isso contribuindo para a corrosão das democracias em meio a um forte desconforto social. Nenhuma dessas posturas combina comigo. É certo que ante a complexidade destes novos tempos, não ousaria exigir das pessoas uma postura no mais puro estilo de Nelson Mandela, Mahatma Gandhi ou Martin Luther King Jr., figuras históricas que souberam lutar por seus ideais tendo a mim como principal aliada. Não sonho com tanto, embora eles continuem sendo inspiração.
Com os pés no chão, no entanto, é preciso que se avance urgentemente na discussão de temas como a regulação das plataformas digitais (focando uma justa medida entre ética, responsabilidade e liberdade de expressão) e de mudanças que aprimorem as instituições e a democracia, com foco na redução das desigualdades sociais. Um parêntese-reflexão: algo está errado quando um excêntrico e boçal bilionário estrangeiro vale-se de uma espécie de “Apito de CaXorro” para, em nome de interesses comerciais, ameaçar as instituições e a democracia de países. Outro dia, no contexto de uma crise na Bolívia, postou: “Nós vamos dar golpe em quem quisermos. Lidem com isso”.
Falando em democracia, minha amiga de jornada, devo dizer que nem tudo são espinhos em minha caminhada. Notícia recente que vem do Brasil renova a esperança. O STF – Supremo Tribunal Federal acaba de decidir, numa votação unânime e histórica, que o artigo 142 de sua Constituição não confere às Forças Armadas o chamado “Poder Moderador”. E não demandou tanto esforço interpretativo para chegar à referida conclusão. A rigor, os julgadores nem precisavam ter se valido da teoria da Separação dos Poderes e do espírito democrático que norteia toda a Carta Magna. Bastaria responder a uma simples indagação: seria razoável fazer referência a mim, propondo que a solução de uma eventual crise entre os Poderes dependesse do uso da força militar ou da ameaça das pólvoras? Isso tem outro nome. Como um filme sombrio, jamais poderá ser associado a mim ou à democracia, até porque a resolução de conflitos sociais e institucionais por vias pacíficas é a razão de nossa existência. Outro aspecto positivo: as Forças Armadas não engoliram essa corda totalitária.
Uma última ponderação sobre a minha natureza. Eu não aceito ser relacionada à omissão, à covardia ou ao ato de lavar as mãos. Igualmente, nunca estarei ao lado do crime, da corrupção, da miséria, da injustiça ou da violência, que são desvalores absolutos, em face dos quais não cabe falar em “meio-termo”. Continuarei, contudo, apostando na empatia, no respeito, no espírito cooperativo, na presunção de confiança, na capacidade de ouvir e na força dos diálogos pessoais e institucionais, mesmo quando eles pareçam impossíveis.
Valdecir Pascoal – Presidente do TCE-PE