Valdecir Pascoal
“Tanto caminhar quanto escrever são atividades simples, comuns. Põe-se um pé diante do outro; põe-se uma palavra diante da outra. Mas, se ligarmos passos suficientes, palavras suficientes, podemos descobrir que fizemos algo muito especial. A jornada de mil quilômetros começa com um único passo; o manuscrito de um milhão de palavras começa com uma única sílaba.” (Geoff Nicholson)
Foi após a experiência pelo Caminho de Santiago, em 2018, que despertei para a especial relação que existe entre caminhar, pensar e escrever. Ao voltar do Caminho, ainda em êxtase, descobri (e, de pronto, recomendo) o livro “A arte de caminhar: o escritor como caminhante”, do britânico Merlin Coverley. Na obra, o autor descreve todos os tipos e perfis de caminhantes e fala dos livros que têm o caminhar como enredo e, sobretudo, dos muitos personagens, pensadores e escritores, cuja marca na história tinha, no peregrinar, um ritual de inspiração.
A partir dessa cativante leitura, passei a compreender mais a mim mesmo, comprovando que a minha própria experiência de escrever – a inspiração, as ideias-chaves, os insights, as sentimentalidades – é fruto, amiúde, de ruminações enquanto eu caminho, em parques, na praia, nas ruas, durante as viagens e até mesmo na própria esteira. Caminhar é, de fato, solo fértil para o surgimento dos chamados “Estalos de Vieira”, aquelas clarividências que, no dizer do ilustre Padre, vêm à tona de repente, revelando o – até então – impensado, descortinando, qual um “fio de Ariadne”, ideias para nos livrar dos labirintos, dos “jardins que se bifurcam” entre pensamentos e letras, como nos lembra o famoso conto de L. Borges.
São muitos os exemplos de pensadores e escritores que tinham o peregrinar como instrumento de sua criação. Na Grécia antiga havia os Peripatéticos, escola filosófica criada por Aristóteles. Eles costumavam caminhar nas alamedas dos jardins (Peripatos) que circundavam os antigos Liceus, discutindo e ensinando lógica, física e a metafísica. A rigor, Jesus Cristo foi um típico peripatético (aquele que ensina caminhando), pois suas pregações aconteciam ao longo de grandes caminhadas ao lado dos seus discípulos. O bem-aventurado “Sermão da Montanha” faz parte dessa sagrada peregrinação. Outro exemplo está em Mateus 4:23: “Jesus caminhou por toda a Galiléia, ensinando nas sinagogas, anunciando a boa notícia do Reino e curando as enfermidades e as doenças graves do povo”. Sem esquecer que para o Cristão, Jesus é o próprio Caminho.
Séculos depois, o filósofo Immanuel Kant continuava a tradição. Conta-se que todos os dias, às três e meia da tarde, em ponto, ele saía de sua casa, na cidade de Königsberg (antiga Prússia) para um passeio vespertino na alameda de Tílias, que hoje se chama Passeio do Filósofo. A pontualidade era tamanha que os vizinhos acertavam seus relógios pela hora que Kant aparecia na porta de casa para iniciar sua peregrinação diária. Dizem que essa rotina só foi interrompida duas vezes em sua vida: ao aguardar notícias da Revolução Francesa e ao ler, extasiado, a obra Emilio, de Rousseau.
A propósito de Rousseau, é dele o famoso livro “Os devaneios de um caminhante solitário”, obra escrita já no final de sua vida, inspirada em suas longas caminhadas pelos arredores de Paris, em que ele, observando as pessoas, a arquitetura e a exuberante flora, refletiu, com sensibilidade, lirismo e tocante serenidade, sobre a vida e a natureza humana. Mais perto de nós, temos o livro “Diário de um Mago”, de Paulo Coelho, publicado em 1987, que retrata a sua jornada de três meses pelo Caminho de Santiago. O livro virou um best-seller mundial e acabou contribuindo muito para o aumento de peregrinos, nos últimos tempos. Vale lembrar, ainda, o “filósofo errante”, Nietzsche, que disse: “Não escrevo apenas com a mão: o pé também quer sempre participar”; as grandes veredas dos sertões de Guimarães Rosa; as ruas por onde andou Alceu Valença; as horas feitas nas canções caminhadas por Geraldo Vandré; as léguas tiranas do Rei do Baião; os caminhos do coração de Gonzaguinha…
Com as devidas proporções guardadas, ciente do meu lugar e preservando os dois pés no chão, admito que este próprio texto, aliado a tudo o que já escrevi, apenas confirmam a amizade e a cumplicidade entre o caminhar, o pensar e o escrever. Caminho, logo penso e logo escrevo. Caminhar é preciso!
Valdecir Pascoal — Conselheiro do TCE-PE