Era 1° de agosto de 2014. Cedo, como de costume, abri o jornal e me deparei com uma matéria assinada pela “pena” sensível da premiada jornalista pernambucana Sílvia Bessa. Ela começava assim: “Estavam com fome as crianças. Então, Rosineide da Silva viu sob um muro a comida que um vizinho pinçou do lixão e que daria para as galinhas e a transformou em lanche para Raiane e Letícia. As garotinhas – de 1 e 7 anos – tomaram leite, comeram macarrão instantâneo e pão vencidos. Morreram na última segunda-feira após matarem a fome pela última vez. As duas (e outras cinco pessoas) haviam consumido alimentos do lixão de Catende, município da Mata Sul de Pernambuco. Faz quatro dias que só consigo pensar nelas. No infortúnio, no desamparo social e na triste morte das pequenas Raiane da Silva e Letícia da Silva. Foi numa semana emblemática que essas meninas perderam as suas vidas e sumiram da paisagem da zona rural do Sítio Limão, onde a família lutava pela sobrevivência. O lixão de Catende, um depósito de restos a céu aberto, já deveria ter sido extinto. Mas, a rigor e pela lei, ele e centenas de outros lixões tinham até amanhã, dia 2 de agosto de 2014, para se acabarem. Diz a lei 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que as prefeituras de Catende e de todo o Brasil deveriam fechar os lixões e criar alternativas de tratamento para os seus lixos”.
Não há como não se comover com histórias-tragédias como esta, que revelam o tamanho do desafio do país na formulação de políticas públicas comprometidas com o bem-estar social. A rigor, os flagelos se repetem, há muitos anos, Brasil afora. Os últimos dados dos órgãos ambientais apontam que metade dos municípios brasileiros ainda deposita seus resíduos sólidos em lixões a céu aberto. As consequências, sabemos, são gravíssimas: contaminação do solo e da água, proliferação de doenças e poluição do ar.
Pois bem, em meio a tantas adversidades, há também bons ventos que merecem celebração. No último dia 20 de março, o TCE-PE anunciou o fim dos lixões no solo pernambucano. Trata-se de um verdadeiro marco, fruto de um esforço coletivo entre instituições de controle, legisladores, gestores e sociedade civil.
No Brasil, a legislação sobre resíduos sólidos remonta aos anos oitenta. Mas, de fato, foi a partir do Plano Nacional, de 2010, concedendo o prazo de 5 anos para os Municípios acabarem com os lixões (até 2014), que esse esforço passou a ser mais efetivo, a despeito das inúmeras prorrogações nesse prazo, tanto que, para municípios com menos de 50 mil habitantes, ele ainda se estende até 2024. Ainda sobre os marcos legais, não se pode esquecer das diretrizes da Agenda 2030 da ONU, da qual o Brasil é signatário, que instituiu, em 2015, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, com destaque para o ODS 12, que trata especificamente da gestão sustentável dos resíduos sólidos.
Volto ao motivo da celebração. No caso de Pernambuco, tem sido, como disse, um trabalho plural, numa sinergia benéfica, desprovida de ribaltas e protagonismos, envolvendo o TCE, o Ministério Público, órgãos ambientais do Estado e, claro, os gestores públicos municipais, responsáveis últimos pelo êxito.
Justamente a partir daquele ano de 2014, com a tragédia de Catende, ano após ano, gestão após gestão, o TCE escolheu a política pública “fim dos lixões” como uma das prioridades de sua atuação. Desde então, além do monitoramento periódico, divulgado com a máxima transparência, com o apoio fundamental da imprensa; além das capacitações oferecidas a gestores por sua Escola de Contas, o TCE instaurou processos de auditorias e autos de infração, por meio dos quais fez determinações aos gestores e, em alguns casos, diante da comprovação de manifesta omissão, aplicou penalidades, mas sempre procurando separar os casos graves daqueles em que havia contextos de efetivos obstáculos para o gestor. O resultado (ver figura que ilustra esta Coluna) é que saímos da situação de 2014, na qual 84% dos municípios recorriam a lixões, para o expressivo número de “zero lixões”, em 2023.
No entanto, o desafio ainda é enorme e exige a atenção permanente de todos os atores envolvidos, em relação, por exemplo, à sustentabilidade dos aterros sanitários, à educação e à consciência ambiental dos cidadãos, além do incremento das políticas de reciclagem e compostagem e da geração de energia a partir dos resíduos.
Ao priorizar o controle para essa importante questão ambiental, diretamente ligada à saúde pública, o TCE-PE, mais uma vez, dá exemplo, fala para o Brasil e para o mundo, colaborando com a eficiência das políticas públicas e com o bom uso do dinheiro do povo. Ao final, ganham a República, a Democracia e o Cidadão. Ganham a dignidade e a vida, como a que não pôde ser vivida pelas pequenas Raiane e Letícia.
Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE