Alessandra Gotti e José Mauricio Avilla Carvalho
O Brasil avançou muito em mecanismos para reforçar o direito à educação infantil. Não faltam leis para garanti-lo, como a Emenda Constitucional 59 de 2009, que incluiu a etapa da pré-escola na educação básica obrigatória, o Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, e, mais recentemente, o anúncio da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância.
Mas, a realidade ainda está longe do que preconizam esses documentos, como mostrou o levantamento nacional “Retrato da Educação Infantil no Brasil: Acesso e Disponibilidade de Vagas”, realizado pelo Gaepe-Brasil (Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação no Brasil).
Segundo a pesquisa, em 44% dos municípios brasileiros há filas de espera para vagas em creches. São mais de 630 mil solicitações de matrícula para crianças nessa etapa. Se esse número já é bastante crítico, essa fotografia se torna ainda mais nítida, e triste, quando vista à luz dos dados que mostram a desigualdade brasileira, já tão marcante desde tão cedo.
Segundo recente estudo do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, o equivalente a 55,4% das 18,1 milhões de crianças de 0 a 6 anos registradas pelo Censo Escolar de 2022 no país estão em famílias inscritas no CadÚnico.
Essas famílias vivem com renda familiar per capita de até R$ 660 por mês e a maioria (3 em cada 4) delas é capitaneada por mães solo que se declaram pardas. Das crianças nesse contexto, 60% nunca frequentou a creche ou a escola –e entre essas, 8 em cada 10, tem de 0 a 3 anos.
Fica evidente, portanto, a necessidade não só de ampliação de vagas, mas de uma estratégia de enfrentamento imediato das desigualdades capaz de garantir mais equidade no acesso à creche e evitar a judicialização que, em geral, acaba penalizando as crianças mais pobres.
Isso porque, com a escassez de vagas, algumas famílias acionam a Justiça para conseguir matricular sua criança. Embora seja um caminho legítimo, as decisões judiciais tendem a beneficiar famílias com maior nível socioeconômico (em relação a outras em maior vulnerabilidade), que têm acesso à informação e a recursos para buscar o sistema de Justiça. Sem garantia de ampliação de vagas, esse método, quase sempre, passa uma criança na frente da fila, sem que outras questões sejam avaliadas, como situações de pobreza e extrema pobreza, de violência doméstica, de deficiência, de monoparentalidade, por exemplo.
Mesmo diante desse cenário, o levantamento “Retrato da Educação Infantil” aponta que 56% dos municípios não utilizam critérios de priorização para a fila por vagas em creches e muitos não coletam informações importantes no registro, como renda familiar e participação em programas sociais. Só 34% perguntam sobre renda familiar, 64% verificam a inscrição no CadÚnico, 70% checam a participação em programas como o Bolsa Família, e nem todos (só 72%) solicitam o CPF da criança.
A falta de dados completos da criança e sua família, aliada à inexistência de um sistema de informação integrado da primeira infância –uma das propostas da Política Nacional Integrada para a Primeira Infância– impede que o atendimento às crianças seja feito com base em dados concretos e numa análise efetiva da ordenação de urgência da necessidade da vaga para as famílias e crianças.
Dentre os principais critérios adotados pelas 2.279 redes municipais que utilizam formas de priorização da fila, destaca-se a situação de risco e vulnerabilidade social, adotado por 64% desses municípios, envolvendo crianças encaminhadas por órgãos como o Conselho Tutelar, Assistência Social ou o Ministério Público.
Além disso, 48% priorizam crianças com deficiência ou necessidades educacionais especiais, como transtornos do desenvolvimento ou superdotação. Outros critérios incluem: crianças cujos responsáveis trabalham (48%), renda familiar (38%) e ter mães solo e adolescentes (23%).
Um conjunto legal robusto oferece respaldo a essas práticas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, a Lei Henry Borel, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e as leis 14.685 de 2023 e 14.851 de 2024, que tratam da obrigatoriedade de transparência da fila por vagas, respectivamente, na educação básica e na creche, inclusive dos critérios de priorização dessas vagas.
O cumprimento dessas normatizações é dever do Estado e de todos os entes federados, pois assegura os direitos das crianças, principalmente daquelas que mais precisam.
Também reforçam a legalidade da priorização outros dispositivos, como a Constituição e o Marco Legal da Primeira Infância, que apontam a necessidade de promoção da equidade como objetivo das políticas públicas.
Estabelecer critérios de priorização não é escolher quem será atendido, mas identificar quem precisa ser atendido primeiro quando não é possível atender todos ao mesmo tempo.
Ao considerar os dados, o cenário de desigualdades brasileiras históricas e o arcabouço legal que circunda o tema, fica evidente que o planejamento do atendimento infantil precisa ir além da simples expansão de vagas e integrar critérios de priorização, de forma a garantir que, havendo fila por vagas, essas sejam distribuídas de forma justa e que a ampliação do atendimento ocorra com base em diagnósticos adequados, garantindo, assim, justiça social ao longo do processo de expansão da rede.
Enfrentar esses desafios requer colaboração entre Poder Público e sociedade civil. Em modelo de colaboração interinstitucional, os Gaepes (Gabinetes de Articulação para a Efetividade da Política da Educação) de Rondônia, Piauí, Goiás e Mato Grosso exemplificam essa abordagem, com governanças articuladas entre todos esses atores que já desenvolveram notas técnicas e diagnósticos com os municípios para entender o acesso e a disponibilidade de vagas, recomendando a definição de critérios de priorização para a fila de espera por creche, o que tem promovido avanços importantes nesses territórios.
Capitaneado pelo Gaepe-Brasil, em esfera nacional, o levantamento Retrato da Educação Infantil é o ponto de partida para a construção de ações articuladas entre diferentes entidades do Poder Público e sociedade civil, que visa a estabelecer a colaboração em prol da Educação.
A ação articulada, coordenada e colaborativa das instituições é fundamental para promover a equidade no acesso às creches –passo crucial para garantir oportunidades iguais desde a 1ª infância.
Com critérios bem definidos, as redes municipais conseguem melhorar a alocação de vagas quando há fila, enquanto avançam na expansão da rede de atendimento, o que resulta em uma política pública mais eficaz e menos propensa a intervenções judiciais. A adoção de critérios equitativos para o atendimento da fila de espera em creche é um dos passos essenciais para que os entes possam avançar na construção de uma sociedade com mais justiça social.
*Artigo publicado originalmente no portal Poder360