Reflexões sobre o “Apagão das Canetas”

Valdecir Pascoal

Passadas as eleições municipais e às vésperas da data magna republicana, 15 de novembro, o momento parece propício para refletirmos sobre um tema que ainda gera discussões na relação entre os controles públicos (Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, Procuradorias, etc.) e a gestão pública nos três níveis federativos: o fenômeno do “Apagão das Canetas”.

Para alguns especialistas, o “apagão” seria caracterizado pela paralisia decisória dos gestores públicos, devido ao medo de responsabilização pelos órgãos de controle que, segundo eles, punem em excesso, comprometendo a inovação e a eficiência dos governos.

Embora não devamos ignorar os estudos sobre o fenômeno, alguns trabalhos, baseados em entrevistas com gestores, revelam conclusões enviesadas e desproporcionais. Focando na fração menor e “sem água” do “copo”, a  avaliação resulta, muitas vezes, de percepções críticas dos próprios fiscalizados, sem evidências concretas em processos de controle, essenciais para conferir cientificidade e separar o joio do trigo.

Em relação à atuação dos Tribunais de Contas (TCs), a partir de minha experiência de mais de três décadas no controle externo brasileiro, particularmente no TCE-PE, ouso lançar algumas ponderações em contraponto às generalizações que permeiam a tese do “Apagão das Canetas”.

Primeiro, é humano e natural uma opinião mais crítica de parcela dos gestores em relação ao fiscal, pois ninguém gosta de ser controlado. Isso não significa que o órgão de controle deva desprezar as críticas ou reagir com soberba, mas elas precisam ser analisadas e aprofundadas com a devida medida.

Outro aspecto é o aparente desconhecimento dos múltiplos papéis dos TCs. No modelo de controle externo concebido pela Constituição de 1988, o exame de conformidade, com a possibilidade de sancionar gestores que cometem erros graves, é um dever desses órgãos. Isso não impede que o TC, antes de uma eventual responsabilização, aja de forma pedagógica, preventiva e até pactuada com a gestão. É também seu dever observar, em auditorias e julgamentos, os obstáculos reais enfrentados pelo gestor e ter em conta a proporcionalidade nas suas decisões. Trocando em miúdos: realismo, empatia e bom senso. A LINDB reforça esses aspectos, já exigidos pelo princípio constitucional do Devido Processo Legal.

Alguns entrevistados mencionam ainda uma suposta intromissão dos TCs nas políticas públicas. Novamente, parece haver certa confusão sobre a dimensão do controle. Foi a mesma CF de 1988 que incluiu o controle operacional da gestão e a avaliação de políticas públicas no espectro de atuação dos TCs. Sendo direto: a “sandália” dos TCs permite que eles avaliem se a política pública é legal, legítima, eficiente, econômica e se beneficia, de verdade, a vida das pessoas. É possível que alguns gestores ainda não tenham percebido a contribuição institucional e social dos TCs do Brasil (Pernambuco avança nesse caminho), quando  priorizam o exame da eficiência e a avaliação de políticas públicas. Nessa atuação, a relação do Tribunal com o gestor é essencialmente dialógica, e não punitiva. Mas, para cumprir essa relevante missão-desafio, é fato: os TCs precisam estar capacitados e, claro, não podem ir “além das sandálias”.

Uma ponderação sobre a inovação e a consequente complexidade de ser gestor hoje. A inovação é essencial, mas a possibilidade de experimentação na esfera pública encontra limites no princípio da legalidade. O gestor público só é livre para fazer o que a lei autoriza. Antes de qualquer iniciativa, ele precisa “combinar com os russos”, ou seja, com as leis. Os TCs não produzem leis e têm obrigação de respeitar a moldura legal, embora possam adotar juízos de razoabilidade e ponderação mais principiológicos, sempre dentro da boa técnica de interpretação.

Reconheçamos, contudo, que a vida do gestor de boa-fé (a maioria, diga-se) não é simples. A legislação é complexa, algumas vezes contraditória, e advém de todas as esferas da federação. Além disso, os órgãos de controle são, em regra, bem estruturados e composto por servidores permanentes e com boa qualificação, enquanto a gestão, em muitas situações, sobretudo nos pequenos municípios, enfrenta problemas nesse quesito. Insegurança jurídica e ausência de uma burocracia pública profissional e motivada parecem ser algumas das causas principais dos descaminhos da gestão pública brasileira.

Embora possam existir desafios e problemas pontuais, que exigem do controle público coragem e humildade para refletir sobre críticas em busca do aprimoramento, os TCs vêm contribuindo ampla e concretamente para a melhoria da gestão pública brasileira. Sua existência e atuação podem até gerar uma espécie de “apagão” na caneta de alguns gestores, mas, no geral, trata-se de um “apagão” benfazejo que impede ilegalidades, ineficiências e malfeitos. Na prática e majoritariamente, sua atuação é farol para o bom gestor e luz na vida do cidadão. O fenômeno do “Apagão das Canetas”, da forma como tem sido propagado, demanda, no mínimo, estudos mais profundos e, na minha percepção, mira alvos equivocados e acaba por criar bodes expiatórios.

Valdecir Pascoal Presidente do TCE-PE