Além da relevante missão constitucional de fiscalização das contas públicas, os Tribunais de Contas no Brasil têm abraçado o importante papel de indutores de políticas públicas visando ao aprimoramento da governança e da sustentabilidade, firmando compromisso de promover ações voltadas ao cumprimento e à efetivação dos 17 (dezessete) Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados pela Organização das Nações Unidas em 2015, em que 193 (cento e noventa e três) Estados-membros aprovaram o documento intitulado “Transformando nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável”.
Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas até 2030 é o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 5) firmado nessa declaração, que inclui nove metas globais e onze metas nacionais abrangendo quase a totalidade das múltiplas dimensões do problema da desigualdade de gênero, tais como: a) violência e discriminação (metas 5.1, 5.2 e 5.3 – “Eliminar todas as formas de discriminação e violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos”, além de “todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas”); b) valorização do trabalho de assistência e doméstico não remunerado (item 5.4) c) equidade no trabalho e ocupação de cargos de liderança (Meta 5.5 – “Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública”); d) acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos reprodutivos (meta 5.6) e) acesso a recursos econômicos e à propriedade e controle sobre a terra, e também sobre o uso de tecnologias (Metas 5.a e 5.b); f) adoção e fortalecimento de políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero (meta 5.c).
No Brasil, em que pese toda a construção legislativa dos últimos anos voltada ao combate à violência contra a mulher e à promoção da igualdade de gênero, a exemplo da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340-2006), da Lei n. 12.015-2009, da Lei n. 13.104-2015 (que instituiu o feminicídio como crime hediondo), da Lei n. 13.718-2018, e da recente Lei de Combate à violência política contra a mulher (Lei n. 14.132-2021), dentre outras, são alarmantes os números sobre feminicídio e demais formas de violência e discriminação contra mulheres.
De acordo com dados publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 699 (seiscentos e noventa e nove ) casos de feminicídio foram registrados entre janeiro e junho de 2022, o que representa uma média de quatro mulheres mortas por dia. Também neste mesmo período, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) registrou 169.676 casos de violência doméstica contra mulheres. Segundo dados do IBGE, no mercado de trabalho há menor participação, ocupação e remuneração das mulheres (73,7% de homens participam do mercado de trabalho, contra 54,5% das mulheres, na faixa de 14 anos ou mais – IBGE, 2019). Já o rendimento médio do trabalho das mulheres no mercado representou 77% dos rendimentos médios dos homens. O Trabalho doméstico não remunerado e com cuidados com os filhos continua sendo uma realidade majoritariamente feminina, típica de uma cultura patriarcal e sexista ainda muito forte no país, até em seus mais recônditos municípios. Ainda de acordo com a ONU, o Brasil tem o maior número de casamentos infantis da América Latina e o 4º mais alto do mundo, o que perpetua uma realidade de violência doméstica, de abandono dos estudos, de gravidez precoce com riscos à saúde e à vida da parturiente e do bebê, dentre outros.
No que pertine ao espaço público, “…apesar da reconhecida importância para a construção de uma democracia plena e equitativa, a participação feminina em posições de liderança e de tomada de decisão na esfera pública ainda é baixa”, conforme destacado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, Cadernos ODS – ODS 5, 2019). À guisa de exemplo, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, as mulheres ocupam atualmente menos de 15% dos cargos eletivos, sendo a minoria também no Ministério Público e no Judiciário, mormente nos cargos de gestão e de liderança nas carreiras. Pesquisa sobre a participação feminina no âmbito dos 33 (trinta e três) Tribunais de Contas brasileiros, realizada em 2022 por grupo de trabalho da Associação Nacional dos Tribunais de Contas – ATRICON, constatou que, dos 226 Conselheiros ou Ministros titulares, 200 são homens e apenas 26 são mulheres e que existem 15 Tribunais de Contas sem qualquer conselheira titular. Imperioso que, em espaços democráticos de poder, homens e mulheres caminhem lado a lado nas decisões de relevância política, o que só pode ser galgado a partir da garantia de representatividade efetiva às mulheres, que constituem mais da metade da população brasileira.
É preciso, portanto, que todos os agentes nacionais, públicos e privados, instituições, organizações da sociedade civil e entes públicos estejam irmanados no propósito de acompanhamento das metas e indicadores do ODS 5, buscando alternativas dinâmicas e diversificadas para educar, difundir direitos e conscientizar sobre a necessidade do aprimoramento dos mecanismos de reconhecimento, prevenção e combate à violência de gênero. O desenvolvimento sustentável não será alcançado enquanto não forem eliminadas as barreiras visíveis e invisíveis que impedem o pleno desenvolvimento e exercício de capacidades das mulheres.
Para tanto, ainda há muito por fazer e os Tribunais de Contas, dentro de sua jurisdição, podem impulsionar políticas públicas para garantir a equidade de gênero. Primeiramente, por meio de mapeamento dos casos de violência e discriminação em cada Estado e município, a fim de fornecer dados consistentes que permitam aos entes públicos traçar estratégias de atuação de acordo com as peculiaridades de cada região, com políticas de enfrentamento distintas. Segundo o IPEA (Cadernos ODS – ODS 5, 2019), “…no caso de registros de ocorrências policiais, não há no país um sistema nacional único que reúna todas as informações registradas nas 27 secretarias estaduais de segurança pública”. Levantamentos e auditorias operacionais são, portanto, importantes instrumentos para a consecução desses objetivos.
Torna-se indispensável, outrossim, que as Cortes de Contas acompanhem as alocações fiscais para as políticas que influenciam na direção da maior equidade de gênero, tornando-as transparentes para a sociedade. Aliar controle social à política de enfrentamento à violência contra a mulher, sob todos os vieses, só traz benefícios aos atores envolvidos. Estimular que os entes governamentais incrementem suas ações dentro da rede de apoio e atendimento presencial às mulheres em situação de violência e também na execução direta de projetos nas áreas de autonomia econômica, de educação inclusiva e de maior atuação das mulheres no mercado de trabalho, com equiparação salarial entre os sexos, além da participação feminina nas esferas de poder e de decisão são medidas fundamentais para a mudança da realidade ora vivenciada.
O estímulo à inclusão social, na política educacional de Estados e municípios, à promoção de campanhas educativas, palestras e cursos sobre a condição feminina e ao combate à violência contra a mulher, com o apoio das Escolas de Contas, são medidas assaz importantes. No âmbito da educação infantil, um dos eixos de política pública mais relevantes para a redução do trabalho não remunerado das mulheres, o Plano Nacional da Educação, tem como meta atender, no mínimo, a 50% das crianças em creches até 2024.
O Tribunal de Contas da União já deu o primeiro passo no sentido da promoção da igualdade de gênero, ao participar, desde 2021, de Grupo de Trabalho da Organização Latino-Americana e do Caribe de Entidades Fiscalizadoras Superiores (OLACEFS), com o objetivo de desenhar uma política de igualdade de gênero para aplicação institucional em todas as entidades participantes, além de incluir a temática nas fiscalizações, considerando que a questão é transversal e envolve políticas diversas como saúde, educação e habitação.
Sabe-se que os desafios são imensos quando se trata de mudança de cultura, quebra de estereótipos e paradigmas arraigados no seio social, no que toca à condição feminina e de igualdade de gênero, mas os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm se mostrado como importantes vetores dos agentes públicos e organizações privadas, além da sociedade civil, na condução de programas e políticas voltados à redução das desigualdades sociais. O diálogo entre as instituições, entes federativos e Tribunais de Contas, estimulando a governança voltada ao atingimento das metas propostas é o caminho para a redução dos graves problemas que permeiam a violência de gênero no país, pois já destacava Sêneca, ainda no século I, que “não há bons ventos para quem não sabe para onde vai”.
Flávia Gonzalez Leite – Procuradora do MPC-MA