O título deste artigo pode provocar estranheza. Afinal, o que há em comum entre um crime, que é a violência doméstica, e um processo regulado pelas normas do direito administrativo, como o das contratações públicas? Para surpresa de alguns, há conexões que irei expor a seguir.
Porém, primeiramente, é preciso situar a dramática situação da violência doméstica em nosso país. A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) conceituou violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Na definição legal, a violência doméstica pode ocorrer tanto no âmbito da unidade doméstica, como no da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Apesar dos inegáveis avanços proporcionados pela Lei Maria da Penha, a tradição cultural machista ainda coloca o Brasil no 5 o lugar mundial no ranking dos feminicídios. De acordo com pesquisa do Senado, em 2021, nada menos que 27% das mulheres já tinham sofrido agressão por um homem, sendo que 18% das mulheres agredidas possuíam convivência diária com o agressor. Um dos principais fatores que inibe a ocorrência de denúncias e sujeita mulheres a uma permanente situação de vulnerabilidade é a dependência econômica e a falta de perspectiva de emprego.
É exatamente essa situação que pode ser enfrentada a partir de dispositivo contido na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – NLL, a Lei 14.133/2021. De acordo com o parágrafo 9º do art. 25, os editais de licitação poderão exigir que percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.
A proposta carecia de regulamentação que, no âmbito da administração pública federal, foi suprida pelo recente Decreto presidencial 11.430/2023. Este normativo tornou obrigatório o que era facultativo e estabeleceu o percentual mínimo de oito por cento das vagas nesses contratos, usualmente chamados de terceirização, para as mulheres vítimas de violência doméstica.
Ademais, o Decreto também regulamenta como um dos critérios de desempate em processos licitatórios o desenvolvimento, pelo licitante, de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, outra positiva inovação contida na NLL.
Em consequência, as contratações públicas constituirão mais um poderoso incentivo econômico para se alcançar o 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas para 2030: “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”.
É de suma importância que estados e municípios sigam o exemplo da União e tornem essa exigência compulsória nos seus editais, multiplicando os efeitos benignos para as mulheres vítimas de violência doméstica.
Em tempo, registro meu reconhecimento às colegas Daniela Zago da Cunda e Letícia Ramos e à professora Ana Carla Bliacheriene, cujo importante estudo, constante da obra ‘Controle Externo e as Mutações do Direito Público – Licitações e Contratos’, foi pioneiro a lançar luz sobre a temática.
Luiz Henrique Lima – Conselheiro Substituto do TCE-MT.