Nº 001/2022
Data: 02-05-2022

Liderança feminina: conselheira comanda GT pela Igualdade de Gênero
No final do mês de março, a Atricon criou um Grupo de Trabalho (GT) que deverá propor diretrizes voltadas à promoção da igualdade de gênero no âmbito do Sistema Tribunais de Contas do Brasil, bem como ao controle externo das políticas públicas nessa área. O GT é coordenado pela integrante do Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa (CTE-IRB) e membro do Conselho Fiscal da Atricon, Susana Maria Fontes Azevedo Freitas (TCE-SE). A conselheira é a primeira entrevistada do Atriconversas.n
Perfil

Bacharel em Direito, com pós-graduação em Direito Público, a conselheira assumiu o cargo no Tribunal de Contas do Estado de Sergipe em 25 de fevereiro de 2014. Exerceu a vice-presidência da instituição em duas oportunidades. Susana Freitas iniciou sua trajetória política em 1988, como vereadora, “num momento em que ainda existia uma certa resistência à participação das mulheres na política”, destaca. Logo em seguida, em 1989, foi convidada a assumir a Chefia da Casa Civil do Governo do Estado, um cargo que, tradicionalmente, era ocupado por homens. A conselheira lembra também que, à época, foi alvo de relutância por parte de setores ante a “ousadia” do governador ao nomear uma mulher para a função. “Tive meu trabalho reconhecido não só pelo Governo mas também pelo povo, que me reelegeu vereadora da Capital, em 1992, como a mais votada do Estado”.

Susana ainda foi deputada estadual por cinco legislaturas. Na Assembleia Legislativa, participou de comissões temáticas e ocupou vários cargos da mesa diretora. Enquanto deputada, foi autora da lei que criou em Sergipe o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM). O Conselho é um órgão com capacidade de dialogar com mulheres de diferentes etnias e classes, ampliando o processo de controle social sobre as políticas públicas. Ainda, exerceu o cargo de Secretária de Governo do Município de Aracaju entre um de seus mandatos.

Qual o Objetivo do Grupo de Trabalho sobre a promoção de igualdade de gênero no âmbito dos Tribunais de Contas do Brasil? Por fazermos parte de uma sociedade predominantemente machista, as mulheres sempre sofreram com a desigualdade em todos os aspectos de suas vidas. Há pouco tempo, por mérito de mulheres fortes e perseverantes, que sacrificaram até as suas vidas por um propósito maior, conseguimos adquirir direitos e prerrogativas que outrora eram inimagináveis, a exemplo do direito ao voto, ao divórcio e até mesmo o direito de estarmos inseridas no mercado de trabalho.

Conforme dados publicados pela pesquisa realizada pela consultoria Grant Thornton, em março desse ano, as mulheres ocupam 38% dos cargos de liderança no Brasil. Se pararmos para pensar, é um número significativo que traduz as reflexões que fomos levados a fazer ao longo da história. Evidentemente, ainda há muito a ser feito para que possamos falar em igualdade de gênero na ocupação de posições de renome e relevância social.

Por isso, o GT instituído pela Atricon é de extrema importância não apenas para os Tribunais mas também para a sociedade. Estamos corroborando para que se atinja, até 2030, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Nesse sentido, destaco que essa temática transversal já encontra respaldo nos mais diversos Poderes, a exemplo do Programa de Logística Sustentável do Tribunal de Contas da União (TCU) e na Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, definida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

No âmbito do Poder Executivo, a promulgação da Emenda Constitucional nº 117/2022 contempla a ideia de ampliação da participação política das mulheres, impondo aos partidos políticos o implemento de recursos do fundo partidário no desenvolvimento desse propósito e a criação de cotas para mulheres no tempo de propaganda eleitoral gratuita.

Assim, fica claro que precisamos ter esse olhar no fomento e nas discussões acerca da igualdade de gênero. Por isso, nosso objetivo, em primeiro lugar, é promover uma tomada de consciência da desigualdade existente entre homens e mulheres no sistema dos Tribunais de Contas, especialmente nos cargos de liderança, sendo a adesão sistemática dessa perspectiva crucial neste início dos trabalhos.

Para tanto, o GT pretende atuar em duas frentes: estimular a adoção de medidas voltadas ao fortalecimento da igualdade de gênero, proporcionando efetivamente a participação das mulheres em cargos de tomada de decisões; e fomentar uma comunicação mais assertiva, respeitosa e empática com as mulheres.

Ademais, pretendemos avaliar as políticas públicas já existentes e identificar quais boas práticas podem ser implementadas nas Cortes de Contas. Uma grande aliada é a Organização Latino-Americana e do Caribe de Entidades Fiscalizadoras Superiores (OLACEFS), renomada organização internacional que visa o intercâmbio de experiências relacionadas ao controle governamental.

Quais resultados a senhora espera obter a partir da criação deste Grupo de Trabalho? Vivenciamos cotidianamente os efeitos da desigualdade de gênero. Por esta razão, recebi a incumbência de liderar este Grupo com muita responsabilidade, e desejo promover mudanças positivas para as mulheres do controle externo que reverberem em suas vivências profissionais e pessoais.

Tenho certeza de que a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres que fazem parte do sistema contribuirá decisivamente para o desenvolvimento sustentável em todas as suas dimensões. O universo dos Tribunais de Contas do Brasil segue sendo, majoritariamente, masculino. Nas 33 Cortes, há apenas 25 mulheres ocupando o cargo de conselheira titular, sendo o número de assentos no máximo, de dois por Tribunal, ou seja, pouco mais de 10% das cadeiras são ocupadas por mulheres. Quando comparamos ao Poder Judiciário, percebemos que existem mais mulheres em posições de liderança, tendo em vista que lá elas representam 44% dos juízes substitutos; 39% dos juízes titulares e 23% dos desembargadores. Assim, a busca pela disrupção do paradigma da desigualdade será uma constante no nosso Grupo, afastando-se cada vez mais práticas antigas, reproduzidas até mesmo inconscientemente. Vamos batalhar para que tenhamos mais mulheres em cargos de liderança, nas mesas diretivas, nas seleções para projetos, comitês, bem como ministrando cursos e palestras.

Independentemente dos resultados e objetivos do GT, como é ser mulher, quais desafios e obstáculos enfrentados em um ambiente predominantemente masculino? A entrada da mulher no mercado de trabalho foi marcada pela dicotomia entre cuidar da família e se dedicar ao labor. A estrutura familiar teve que ser remodelada uma vez que as mulheres passaram a ser protagonistas de suas vidas e em muitos casos, passaram a assumir o lugar de “chefe de família´’. Entenda-se, elas passaram a ser as principais responsáveis pelo sustento da casa e dos filhos, podendo ter ou não o apoio do marido ou companheiro. Segundo estudos, de 2001 a 2009, a proporção de famílias chefiadas por mulheres no Brasil subiu de aproximadamente 27% para 35% do total. Entre 2014 e 2019, quase 10 milhões de mulheres assumiram o posto de chefe de família. Por assumirem esse papel, passaram a trabalhar mais e assumir múltiplas tarefas, afinal avocaram as competências familiares e profissionais. Em que pese serem mais escolarizadas, trabalharem mais, continuam ganhando 27% a menos, quando comparadas ao gênero masculino.

 

Como se percebe, ainda há muito a ser refletido e feito sobre a igualdade de gênero. Em que pese essas mulheres terem que lidar com os afazeres domésticos, se preocuparem com os filhos, familiares e ainda dar conta dos compromissos relacionados ao trabalho, elas precisam se superar a cada dia para cumprir bem todas essas tarefas.

Mas, não é só este desafio que enfrentamos. Mesmo quando bem-sucedidas em nossas profissões, somos mais cobradas e criticadas quando comparadas aos homens. Isso aumenta ainda mais as nossas cobranças pessoais e emocionais, como se vivêssemos constantemente sendo obrigadas a atingir o grau da perfeição para que pudéssemos provar à sociedade que podemos estar ali exercendo o nosso papel.

“Mesmo quando
 bem-sucedidas em nossas profissões, somos mais cobradas e criticadas quando comparadas aos homens. Isso aumenta ainda mais as nossas cobranças pessoais e emocionais, como se vivêssemos constantemente sendo obrigadas a atingir o grau da perfeição para que pudéssemos provar à sociedade que podemos estar ali exercendo o nosso papel.

Nos Tribunais de Contas brasileiros não seria diferente. A competência da mulher é posta em xeque constante e reiteradamente. Não é incomum uma mulher ter sua fala interrompida por outro homem ou presenciar situações em que um homem tenta explicar algo a ela, sem considerar que ela possa já saber, geralmente com tom paternal.

Um exemplo que ilustra o quanto ainda precisamos progredir vem de um relato que recebi de uma conselheira. Ao ingressar no cargo, ela percebeu que  no espaço destinado aos gabinetes  sequer havia banheiros femininos. Então, é uma realidade que está mudando há muito pouco tempo e temos um longo caminho a percorrer.

O que a senhora espera em relação à representatividade de gênero, no âmbito do Controle Externo, Tribunais de Contas, órgãos públicos, ou em qualquer outro segmento da sociedade? É extremamente importante se sentir aceito por uma coletividade, e ser representado por alguém, geralmente uma pessoa prestigiada e conhecida, tem um peso enorme.

A representatividade não é apenas a organização de grupos buscando que seus interesses sejam representados e garantidos, mas é, sobretudo, parte da formação do que é o indivíduo que compõe esse grupo.

Por exemplo, quando uma mulher alcança o cargo mais alto do Tribunal de Contas da União – a Presidência da Corte – se permite criar a subjetividade na identidade feminina de que outras mulheres também podem chegar lá, como bem destacou em seu discurso de posse a vice-presidente dos Estados Unidos, ao afirmar que embora fosse a primeira mulher naquele posto, não seria a última, porque cada garotinha que a viu naquele dia, enxergou um país de possibilidades.

Essa representatividade é muito importante numa democracia, e deve ser valorizada, aplaudida.

Embora sejamos maioria na população brasileira, não somos maioria nos espaços de poder, como o Congresso Nacional, a Presidência da República, o Supremo Tribunal Federal, tampouco nas cadeiras dos membros dos Tribunais de Contas.

Como concluiu a excelente pesquisa realizada pela Atricon em 2019, intitulada “Quem são e o que pensam os Conselheiros/Ministros dos Tribunais de Contas e seus Substitutos”, este espaço ainda é eminentemente formado por homens, brancos e de classe social alta.

Assim, não é difícil concluirmos que o aumento da participação feminina neste ambiente é fundamental para a democracia, que tem por premissa o cumprimento da vontade da maioria, respeitando-se os direitos das minorias. 


Deixe uma reflexão ou consideração final sobre esse tema.  Ao longo da minha jornada, fui desbravando caminhos e construindo pontes para que outras mulheres pudessem ser parte integrante de uma sociedade. Sempre fui e continuo sendo uma mulher firme, que tem sede por mudanças. Mudanças que começam em nós, em nossos relacionamentos pessoais e profissionais, nas rupturas de paradigmas e em nossa capacidade de nos indignar com as desigualdades e com a falta de oportunidades.

Por isso, meu desejo é contribuir cada vez mais com uma sociedade plural em que exista equidade de gênero, na qual a gente possa continuar promovendo uma mudança social através do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades e atitudes, onde a presença feminina não seja reservada ao espaço da mulher, mas ao espaço de todos. 

 

“Por isso, meu desejo é contribuir cada vez mais com uma sociedade plural em que exista equidade de gênero, na qual a gente possa continuar promovendo uma mudança social através do conhecimento e do desenvolvimento de habilidades e atitudes, onde a presença feminina não seja reservada ao espaço da mulher, mas ao espaço de todos.”

Quero honrar a história de tantas outras mulheres que iniciaram esta mudança e que permitiram estarmos, hoje, assumindo papéis sociais tão importantes. Usufruindo nossas conquistas sem medo, sendo reconhecidas por nossas qualidades pessoais e profissionais, sendo ouvidas e tendo nossas necessidades respeitadas.

No âmbito dos Tribunais de Contas, especialmente, quero ser parte do processo de valorização das mulheres, tendo por propósito a construção de diálogos evolutivos que garantam que mulheres ocupem espaços de poder de maneira sadia e respeitosa. Que elas se sintam pertencidas aos tribunais e continuem enxergando, assim como eu, que somos esperança para esse processo de transformação e harmonização de instituições, sejam elas quais forem.

Entrevista: Matheus Giglio.
Edição: Priscila Oliveira.
Webdesigner: Márcia Vecchio.