Consensualidade no TCU: fundamentos, características, natureza e efeitos

Rodrigo Medeiros de Lima
Cristina Machado Costa e Silva

É consabido que o Tribunal de Contas da União instituiu, por meio de sua Instrução Normativa nº 91/2022 (IN/TCU nº 91/2022), procedimento de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidade da administração pública federal, em matérias sujeita a sua competência, e criou, na sua estrutura, unidade especializada na condução dos respectivos processos: a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso).

A iniciativa guarda semelhança, por exemplo, com o Centro de Mediação e Conciliação criado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ao qual compete “buscar, mediante mediação ou conciliação, a solução de questões jurídicas sujeitas à competência do STF que, por sua natureza, a lei permita a solução pacífica”, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, da Resolução/STF nº 697/2020.

A possibilidade inaugurada pela IN/TCU nº 91/2022 foi festejada por muitos, que nela enxergam a oportunidade de uma mediação qualificada, apta a agregar maior segurança jurídica aos eventuais ajustes e às partes envolvidas, com o potencial de destravamento de situações contenciosas que se arrastam no âmbito da administração pública federal. Porém, persiste alguma hesitação por parte de setores da opinião pública. Alguns questionam se haveria pertinência com o papel institucional do TCU. Para outros, entretanto, a hesitação se refere à própria ideia de consensualismo na administração pública, em virtude de desconfiança em relação a qualquer diálogo conciliatório entre agentes públicos e privados e de concepção que reputamos, com todas as vênias, vetusta e reducionista do princípio da indisponibilidade do interesse público.

A identificação do interesse público não é em todo caso simples, perpassando, por vezes, complexos juízos de ponderação entre interesses juridicamente relevantes, públicos e privados, constitucional e legalmente tutelados, conforme leciona Binenbojm (Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 111).

Daí porque, em situações de maior complexidade — como são aquelas levadas à intermediação do TCU —, há que se oportunizar ao gestor o exercício da discricionariedade necessária para incorporar esses juízos de ponderação em seu processo decisório, tendo sempre a norma jurídica como parâmetro e baliza.

A despeito do risco de corrupção inerente ao inevitável relacionamento público-privado, o engessamento excessivo do administrador, além de não impedir desvios, conduz à inação e à perpetuação de impasses nas relações público-privadas. São situações que, tal qual a corrupção, drenam recursos escassos e obstaculizam o alcance de objetivos de interesse público.

A alternativa que o TCU propõe envolve a procedimentalização e supervisão — mediante espécie de controle concomitante — do processo negocial e decisório necessário à construção de soluções consensuais, orientadas à redução do risco de ilegalidades e desvios de finalidade, mas também de questionamentos futuros, procurando agregar-lhes credibilidade e estabilidade.

Papel do Ministério Público junto ao TCU
A intenção do presente artigo é explicar como isso é feito, por meio da análise do procedimento instituído pela IN/TCU nº 91/2022, diferenciando os papeis que são desempenhados pelos distintos agentes do controle externo, entre eles o Ministério Público junto ao TCU, incumbido de velar pela boa aplicação do direito no âmbito do controle externo (custos iuris), para o que dispõe de garantias constitucionais que lhe resguardam o exercício independente de suas funções.

Em seus considerandos, a IN/TCU nº 91/2022 aponta alguns de seus fundamentos normativos, a exemplo da Lei nº 13.140/2015, que dispõe sobre a possibilidade de utilização da autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, e do artigo 13, § 1º, do Decreto nº 9.830/2019, que prescreve que a atuação de órgãos de controle deve privilegiar ações de prevenção antes de processos sancionadores.

Além desses, vale mencionar o artigo 30 do Decreto-Lei nº 4.657/1942, que impõe às autoridades públicas atuação proativa em prol da promoção da segurança jurídica, e o artigo 3º, § 2º, da Lei nº 13.105/2015, que estabelece, de forma inequívoca, que “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”.

A norma tem em conta, ainda, o fato de o TCU já manter interlocução com gestores e particulares no exercício de suas funções pedagógica e orientadora, “de forma a auxiliá-los no estabelecimento de alternativas para a solução de problemas de interesse da administração pública”.

Estão habilitadas a formular solicitações de solução consensual perante o TCU as mesmas autoridades habilitadas a submeter-lhe consulta [1] — instrumento esse instituído em lei (artigo 1º, inciso XVII, da Lei n° 8.443/1992) e concretizador do papel de orientação, mas também de pacificação de entendimentos e estabilização de controvérsias no âmbito da administração pública federal.

Além desses, são igualmente habilitados na IN/TCU nº 91/2022 os dirigentes máximos das agências reguladoras federais e os ministros do próprio TCU, na condição de relatores de processos em que controvérsia relevante esteja posta (artigo 2º da norma). Neste último caso, a iniciativa depende de manifestação de interesse na solução consensual dos órgãos e entidades da administração pública federal envolvidos na controvérsia (artigo 3º, inciso V, da IN/TCU nº 91/2022).

Entre os requisitos formais estabelecidos na norma para a submissão do pedido, está “a discriminação da materialidade, do risco e da relevância da situação apresentada” e “a especificação das dificuldades encontradas para a construção da solução”, em parecer técnico-jurídico sobre a controvérsia (artigo 3º, incisos I e II, da IN/TCU nº 91/2022).

Autuado o procedimento de Solicitação de Solução Consensual, passa-se à análise da admissibilidade, primeiramente, a título opinativo, pela SecexConsenso, e, em seguida, a título decisório, pelo presidente do TCU. Os critérios de admissibilidade são especificados na norma, ainda que se reserve alguma margem de discricionariedade ao presidente do tribunal, com fins à racionalização da atividade do controle externo e à maximização do valor público por ele gerado, observada, ainda, a sua capacidade operacional. Caso o objeto da controvérsia já esteja sendo tratado em processo em tramitação no TCU, a admissão da solicitação depende, ainda, da concordância do respectivo ministro relator (artigos 4º, 5º e 6º da IN/TCU nº 91/2022).

Uma vez admitido, o processo é encaminhado à Secretaria-Geral de Controle Externo do TCU para, ouvida a SecexConsenso, designar, por meio de portaria, os membros da Comissão de Solução Consensual. A Comissão é composta, no mínimo, por (i) um auditor da SecexConsenso, que atuará como coordenador; (ii) um auditor da unidade de auditoria especializada na matéria tratada; e (iii) um representante de cada órgão ou entidade da administração pública federal envolvido, admitida, ainda, a participação de representantes de particulares igualmente envolvidos na controvérsia (artigo 7º da IN/TCU nº 91/2022).

O papel dos técnicos do TCU na Comissão não é o de integrar o ajuste de vontades, mas o de terceiros equidistantes, no papel de mediação, orientação e supervisão, com fins a afastar as negociações de fórmulas possivelmente vulneradoras do interesse público ou incompatíveis com o ordenamento jurídico.

A manifestação das unidades técnicas do TCU envolvidas no processo, quanto à proposta de solução consensual construída na Comissão, contempla a opinião do seu auditor designado para compô-la e dos respectivos diretor e titular, as quais são individualmente registradas nos autos (artigo 7º, § 6º, da IN/TCU nº 91/2022), independentemente de eventuais divergências — como é de praxe nos processos do TCU —, como forma de ampliar a transparência, os subsídios aos julgadores e até mesmo o ônus argumentativo, já que eventual decisão final do plenário que venha discordar de alguma das opiniões técnicas terá que enfrentar as premissas e conclusões destas.

Havendo concordância de todos os membros da Comissão externos ao TCU e de ao menos uma das unidades do TCU integrantes da Comissão com a proposta de solução construída, o processo tem prosseguimento (artigo 8º da IN/TCU nº 91/2022). Observe-se que a concordância dos membros da comissão externos ao TCU é condição sine qua non do consenso pretendido, como representantes que são dos órgãos ou entidades da administração pública federal e, eventualmente, dos particulares efetivamente envolvidos na controvérsia.

Já a exigência da concordância de ao menos uma das unidades do TCU envolvidas — concordância essa que não deve se referir ao mérito administrativo, ao juízo de conveniência e oportunidade a ele inerente, mas sim à juridicidade do ajuste —, constitui espécie de filtro das soluções consensuais que serão levadas à definitiva apreciação do plenário do tribunal. Eleva-se, assim, o peso das opiniões técnicas dos auditores, que, de regra, apesar de constituírem importante e indispensável elemento de informação e convencimento, não se revestem de conteúdo decisório nos demais procedimentos finalísticos do TCU, mesmo que sob a forma de espécie de poder de veto.

O processo é, então, encaminhado, primeiro, a representante do Ministério Público junto ao TCU, para manifestação, e, em seguida, para o respectivo ministro relator, ambos definidos mediante sorteio.

A intervenção do Ministério Público justifica-se pelo seu perfil de órgão funcionalmente independente (artigo 127, § 1º c/c artigo 130, ambos da CF, e artigo 80 da Lei nº 8.443/1992) e eminentemente jurídico, com exigências de investidura que espelham as exigências das demais magistraturas constitucionais — aprovação em concurso público de provas e títulos, com participação da OAB, bacharelado em direito e prática jurídica mínima (artigo 129, § 3º c/c artigo 130, ambos da CF). Sua manifestação soma-se aos subsídios técnicos fornecidos pelos auditores, para contribuir para um julgamento adequado, amplamente informado e suficientemente fundamentado.

Ao ministro relator incumbe levar os autos a julgamento, com seu voto, perante o plenário do TCU, que poderá acatar a proposta de acordo, recusá-la ou sugerir-lhe alterações, que, se acolhidas pelos interessados, permitirão ao plenário o acatamento da proposta (artigos 8º, 9º, 10 e 11 da IN/TCU nº 91/2022).

Ressalte-se que tanto os ministros do TCU quanto os membros do Ministério Público junto ao TCU têm em seu favor garantias constitucionais próprias de magistratura — e.g. vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios —, voltadas a resguardá-los de pressões indevidas e lhes assegurar uma atuação independente e isenta.

Plenário homologador
O plenário do TCU, por sua vez, desempenha papel tipicamente homologatório, como magistralmente registrou o ministro Benjamin Zymler no voto condutor do Acórdão 1.797/2023-Plenário:

(…) é, na realidade, um ato homologatório. Levado o negócio jurídico ao exame da Corte de Contas – subscrito por jurisdicionados que têm sobre si o dever de prestar contas, nos termos do art. 70, parágrafo único, da Constituição Federal -, delibera-se em um juízo de juridicidade amplo. Tanto se ratifica a legalidade do objeto da negociação, quanto da sua motivação, em termos de conveniência e oportunidade, direcionada ao atendimento do interesse público primário.

O julgador destaca haver, em tal atuação do TCU, espécie de “controle concomitante excepcionalíssimo, pari passu, com o ato controlado, necessário para conferir a estabilidade da emanação de vontades”, pelo fortalecimento da segurança jurídica do negócio, que serviria, inclusive, de catalizador para o apaziguamento da relação entre as partes.

Esse controle concomitante se amolda, sem maiores dificuldades, à ampla competência constitucional do TCU de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade, nos termos dos artigos 70 e 71 da CF. Vale mencionar que o controle externo desempenhado pelo TCU não raro se reveste de caráter orientador.

Para além do instrumento da consulta — aqui já mencionado e de clara vocação orientadora —, a possibilidade atribuída ao TCU de realizar fiscalizações também operacionais, (artigo 71, inciso IV, da CF), voltadas à apuração do desempenho da gestão pública (sua eficácia, eficiência e efetividade), de suas estruturas e políticas públicas, tem por resultado esperado a expedição de medidas recomendatórias e, portanto, orientadoras e contributivas, voltadas ao aperfeiçoamento da atividade administrativa.

O efeito de fortalecimento da segurança jurídica mencionado decorre, primeiro e diretamente, do fato de se afastar, a princípio, o risco de futuros questionamentos quanto à legalidade, legitimidade ou economicidade do ajuste e mesmo de responsabilização dos gestores no âmbito da Corte de Contas, até por dever de coerência e boa-fé da instituição, o que lhe veda a adoção de comportamentos contraditórios. Trata-se, contudo, de efeito circunscrito à esfera do controle externo, não havendo obstáculo algum a questionamentos judiciais, por parte do Ministério Público Federal, de outras entidades legitimadas a pleitear tutelas judiciais coletivas, e mesmo do cidadão comum, por meio do instrumento da ação popular.

De todo modo, nada impede que o TCU venha a atuar, se constatado adiante, por exemplo, que teria havido conluio; que informações relevantes foram dolosa ou culposamente (culpa grave) ocultadas do TCU; ou que, na implementação do acordo, as partes teriam se desviado dos parâmetros de legalidade previamente estabelecidos.

Pode-se cogitar, ainda, de potenciais efeitos indiretos em prol da segurança jurídica do ajuste, dependentes, porém, da credibilidade do TCU e da condução por ele dada aos processos de solicitação de solução consensual, a suscitar a deferência de outras instâncias de controle e responsabilização. Não à toa, a Corte de Contas, ao disciplinar o procedimento, incluiu a participação de ao menos duas de suas unidades técnicas e a intervenção obrigatória do Ministério Público, dando tratamento transparente a possíveis divergências que possam surgir.

Tais divergências são naturais, até pela complexidade das matérias e independência com que auditores e o Ministério Público desempenham suas funções. E se prestam a evidenciar quaisquer possíveis aspectos de juridicidade controversa, cuja eventual superação, pelos julgadores, exigirá esforço argumentativo adicional e embasamento sólido.

É do interesse de todos os envolvidos — gestores públicos e demais interessados, mas também do TCU, seus auditores e Ministério Público de Contas — que as soluções construídas inspirem confiança, tanto para que subsistam a eventuais questionamentos, preservando seus efeitos, quanto para a consolidação do TCU como locus possível e à disposição do administração para que essas negociações se estabeleçam e, sempre que possível, conduzam à construções de soluções céleres, credíveis e aderentes ao interesse público.

> Rodrigo Medeiros de Lima é procurador do MPTCU (Ministério Publico Junto ao Tribunal de Contas da União)

> Cristina Machado Costa e Silva é procuradora-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União

* Artigo originalmente publicado no portal Consultor Jurídico