A Pós-verdade da Previdência Social
Pós-verdade é um neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. Na cultura política, denomina-se política da pós-verdade aquela na qual o debate se enquadra em apelos emocionais, desconectando-se dos detalhes legais e reais. Portanto a pós-verdade não é sinônimo de falsificação da verdade, mas é uma construção em que a verdade real ganha importância secundária. Vale dizer, é o predomínio das crenças e versões em detrimento dos fatos.
No Brasil desses estranhos tempos, estamos vivenciando um cenário de pós-verdade em torno do debate sobre a Reforma da Previdência Social. Existem muitas situações que estão sendo trazidas e fomentadas nas discussões, justamente para enaltecer aspectos menos relevantes e desmerecer pontos fundamentais sobre o basilar direito dos trabalhadores.
Depois de muita expectativa, no dia 20/02/2019, o Presidente encaminhou o texto final ao Parlamento. Pode-se observar que a Reforma Constitucional proposta segue a linha daquela sugerida pelo ex-chefe Michel Temer, que foi, com justiça, muito criticada, inclusive pelo atual Presidente. Em alguns aspectos, esse texto do Governo atual, que manteve a idade mínima de 65 anos para homem e 62 anos para mulher, chega até a ser mais duro ao trabalhador, como é o exemplo da regra de transição de 12 anos, contra os 21 anos da proposta anterior.
Obviamente, este não é o local apropriado para tentar se exaurir ou aprofundar o grande e complexo debate sobre a Previdência. Porém, pela relevância e recorrência da matéria, queremos chamar a atenção para as possíveis emoções e crenças sociais e pessoais que estão contaminando uma análise mais técnica e adequada. A Reforma da Previdência tem sido encarada e propagada nos últimos anos como uma verdadeira “panaceia” para todos os males da República. Estão tentando incutir na cabeça do brasileiro a ideia de que as aposentadorias, pensões e alguns outros benefícios sociais são os grandes entraves para uma retomada do crescimento econômico.
Fala-se que a Previdência já está se tornando inviável e que seu “rombo” afeta sua sustentabilidade. Difunde-se o discurso, raso e, por vezes, falacioso, de que os servidores públicos, de maneira geral, constituem-se numa casta detentora de privilégios que precisam ser extirpados com urgência para não quebrar o país, praticamente estabelecendo-se mais um embate maniqueísta na sociedade brasileira: estando, de um lado, os trabalhadores e, noutra banda, os empresários. Esses são apenas alguns dos “mantras” que vêm sendo repetidos nesses últimos anos. Percebe-se, claramente, que estão tentando transferir para os trabalhadores a conta e os graves problemas orçamentários do País.
Porém é curial sair da superficialidade! O debate precisa ser amplificado para que não se perca nesse perigoso ambiente da pós-verdade. Preliminarmente, não se pode olvidar que a Previdência Social é apenas uma das vertentes do tripé constitucional da Seguridade Social, tida por muitos estudiosos das ciências sociais e jurídicas como uma das maiores conquistas dos trabalhadores na CF/1988, um verdadeiro sistema de proteção social, fundamental para os países que precisam reduzir suas desigualdades. Além da Previdência, a Seguridade Social é composta pela Assistência Social e pela Saúde.
O Art. 195 do Texto Constitucional, justamente com a preocupação da viabilidade e sustentabilidade da Seguridade, previu múltiplas formas para seu financiamento. Ou seja, a contribuição dos empregados e empregadores é apenas uma das formas, existindo outras, como percentuais pré-definidos das contribuições sociais sobre o lucro líquido das empresas, sobre o consumo e também percentual sobre a receita de concurso de prognósticos (loterias). Portanto reduzir o debate da Previdência à questão da aposentadoria e seu próprio financiamento pelo trabalhador é ter uma visão míope, perigosa ou tendenciosa do problema.
Não se pretende aqui defender a tese de que não há um “rombo” da Previdência, embora se saiba que existam também inquestionáveis “roubos” da Previdência. Não se quer negar a importância de uma Reforma da Previdência. O que defendemos e aquilo em que acreditamos é uma necessária ampliação significativa do debate. E a hora é essa! O Projeto já chegou à Casa do Povo, locus apropriado para audiências públicas e consultas populares. Não dá para tratar da questão da Previdência apenas restrita às contribuições pagas pelos empregadores e empregados, tampouco de forma limitada às aposentadorias. É cediço que o problema do deficit orçamentário do País é muito mais amplo e complexo. Por que não trazer para o debate a questão gravíssima e impactante da dívida pública brasileira? À guisa de exemplo, no Orçamento do Governo Federal executado em 2018, a Previdência Social foi responsável por 24,48% do total, já os juros e amortizações da Dívida representaram 40,66% de todo o Orçamento. É evidente que não se pode deixar de fora essa questão da dívida pública, já que o que está em jogo é justamente uma melhor estruturação do País para se ter superavits e margens no Orçamento para investimentos e ensejar a retomada do crescimento econômico. Como não incluir no debate da Reforma da Previdência a questão da sonegação? Já se divulga que ultrapassa a casa dos R$400 bilhões a conta dos devedores da Previdência (dados da CPI da Previdência). Como não se considerar nesse debate a questão das constantes renúncias de receitas e das desonerações? É mesmo justo que o agronegócio seja desonerado de contribuir com a Previdência? É isso que a sociedade quer e é disso que precisa? E a questão da Desvinculação das Receitas da União, as chamadas DRUs? Como é que a Previdência está quebrada e ainda se retiram percentuais consideráveis de suas fontes de financiamento para outros destinos?
Esses são apenas alguns questionamentos que precisam, inexoravelmente, ser inseridos nas pautas dos debates sobre a Reforma da Previdência. A sociedade precisa estar atenta e ampliar seus conhecimentos sobre a matéria. É necessário formar a opinião a partir de uma visão ampla, fugindo dos “mantras” que são propalados de maneira simplista e tendenciosa. E os Tribunais de Contas devem também ser inseridos nesse debate. Essas Casas de Controle poderão municiar os Parlamentares e os cidadãos de bons subsídios, a partir de, por exemplo, criteriosas auditorias nas dívidas públicas e nas renúncias de receitas.
As cartas já foram postas. Agora é a hora de ter vez e voz o cidadão, que deve ser o centro de qualquer reforma. Vamos fazer nossa parte, participando dos debates, apresentando sugestões aos Parlamentares e tentando adquirir mais informações para não cairmos nas armadilhas das pós-verdades existentes nessa seara. Ao final, oxalá o Congresso Nacional possa efetivamente apreciar o Projeto e aprovar uma Reforma com vistas a cumprir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, listados, com destaque, no terceiro artigo da Carta Maior, entre eles os da justiça social, do bem-estar de todos e da redução das desigualdades sociais.
Inaldo da Paixão Santos Araújo
Mestre em Contabilidade. Contador. Conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Professor. Escritor.
Luciano Chaves de Farias
Mestre em Políticas Sociais e Cidadania. Advogado. Secretário-Geral do Tribunal de Contas do Estado da Bahia. Professor. Escritor.