A norma Constitucional insculpida no artigo 71, inciso I e II atribui às instituições que exercem o Poder Legislativo e aos Tribunais de Contas respectivos, a tarefa de apreciar e julgar as contas prestadas anualmente pelos Chefes do Poder Executivo e dos demais administradores e responsáveis por valores ou bens públicos, abrangendo seu poder de jurisdição, inclusive, as pessoas jurídicas de direito privado que derem causa a perda/extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário.
Cabe ainda aos Tribunais de Contas, entre outras funções, a tarefa de aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecem entre outras cominações multa proporcional ao dano causado ao erário(1).
Essas duas funções – jurisdicional e sancionatória – representam o amálgama do sistema de controle dos Tribunais de Contas com a sociedade e a democracia brasileira. É através das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas que se revela para a sociedade brasileira o DNA da gestão e do gestor da coisa pública com a finalidade de, no processo de escolha dos governantes das cidades, dos estados e do país, ter a população, por intermédio do voto, de afastar os maus gestores da coisa pública, e isso só é possível através do exercício e conhecimento da função jurisdicional dos Tribunais de Contas.
Dentro da atuação jurisdicional dos Tribunais de Contas, após o fim do ciclo orçamentário, quando da análise da conformidade da execução orçamentária com o ordenamento jurídico, o julgamento das contas pode resultar em uma decisão de natureza jurídica declaratória e/ou condenatória. Declaratória no ponto em que se limita a atestar a adequação ou inadequação das relações jurídicas perpassadas entre o ordenador de despesas e o quadro normativo estabelecido, limitando-se, portanto, a declarar o modo de ser(2) dessas relações jurídicas que foram estabelecidas.
Assim, ao entender pela regularidade ou irregularidade da atuação do gestor frente os limites jurídicos postos, este órgão de controle externo atesta situações jurídicas preexistentes, porque já finda a execução orçamentária, declarando se houve conformidade ou desconformidade com a Constituição Federal, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, com a Lei Orçamentária Anual e daí por diante. Desta feita, será meramente declaratória a decisão que se ater a entender pela regularidade ou irregularidade das contas executadas, sem impor qualquer sanção, seja em multa ou em restituição ao erário.
Entretanto, há espaço para que as decisões proferidas tenham conteúdo condenatório, porque assente a possibilidade de estabelecimento de multas e de imposição de restituição de débitos apurados, que, em conformidade com a Constituição Federal de 1988 são títulos executivos(3). Logo, existente esse caráter sancionatório na decisão proferida, reveste-se de dupla natureza jurídica, porque atesta a (des)conformidade da atuação do gestor, possuindo natureza declaratória, mas também o condena ao cumprimento de uma obrigação que pode ser tanto o recolhimento de sanção pecuniária como a devolução de montantes aos cofres municipais, o que caracteriza sua natureza condenatória.
Quanto ao seu caráter sancionatório, a regra geral estabelecida pelo ordenamento jurídico é a sua prescritibilidade, haja vista o respeito à segurança jurídica e seus princípios consectários, o que deve ser seguido também no que diz respeito às decisões condenatórias proferidas nos processos de contas (4).
No entanto, deve-se ressaltar que a regra geral é que as ações declaratórias não possuam prazo prescricional para serem intentadas, não havendo, de igual modo, prazo preclusivo para que as decisões dessa natureza sejam expedidas.
Ao par desse contexto, somente o caráter condenatório das decisões proferidas em processos de contas são atingidos pelos efeitos da prescrição, irradiando somente a impossibilidade de imposição de ressarcimento ao erário e de multas porventura estabelecidas.
Entretanto, o caráter declaratório das decisões de contas permanece incólume, independente do lapso temporal percorrido, porque o desempenho do gestor diante dos limites normativos, no exercício que se analisa, não sofre alterações de fato e de direito que afaste o dever constitucional dos Tribunais de Contas de emitir juízo de valor sobre situação já consolidada. Isso porque se privilegia a supremacia do interesse público, cabendo ao controle externo expor à coletividade a adequação ou inadequação do ordenador no trato com a coisa pública.
Há, no entanto, uma única hipótese excludente do dever dos Tribunais de Contas proferirem decisões em que declarem se as prestações de contas anuais encontram-se regulares ou irregulares. É o caso em que as contas se apresentem iliquidáveis, ou seja, quando essa for materialmente impossível de julgamento por ocorrência de hipóteses como a de caso fortuito ou força maior ou na impossibilidade do exercício pleno do contraditório e ampla defesa, onde, por força das circunstâncias o Tribunal ordenará o trancamento das contas e seu arquivamento. Entretanto, nessas hipóteses só ocorrerá a prescrição do julgamento das contas após 5 (cinco) anos contados da decisão terminativa, se o Tribunal não encontrar novos elementos suficientes a autorizar o desarquivamento do processo (5).
Desse modo é importante estabelecer desde logo que a repercussão geral estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 636886/AL, cujo relator fora o ministro Alexandre de Moraes visa tão somente reconhecer prescrita eventual pretensão de ressarcimento ao erário de multas ou valores estabelecidos pelos Tribunais de Contas nos eventuais conteúdos das decisões proferidas pelos mesmos, não vislumbrando qualquer impedimento ao dever constitucional das Cortes em pronunciarem-se em declaração de regularidade ou irregularidade de contas públicas, com ou sem as ressalvas necessárias. Isso porque a Constituição Federal atribuiu às
cortes de contas o papel de órgão protetor dos direitos fundamentais da sociedade, em especial quando por suas decisões confere à sociedade e ao processo democrático a seleção dos agentes públicos nas eleições dos governantes dos municípios, estados e do país, assim como também exercem um papel de controle dos agentes e de políticas públicas.
Portanto, o TEMA 899 DE REPERCUSSÃO GERAL do STF não tratou do processo no Tribunal de Contas, mas da execução da decisão do Tribunal de Contas. Tendo em vista não ser possível vislumbrar, que tal reafirmação de prescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário seja capaz de ensejar, por via de consequência, prescritibilidade também da pretensão do reconhecimento de dano ao erário pelos Tribunais de Contas, não constituindo, pois, preliminar ou prejudicial de análise de mérito, sobretudo porque a própria decisão enfatiza que ações de improbidade administrativa são ajuizadas com base em decisões dos Tribunais de Contas,
ofertando essa via como caminho possível para o ressarcimento.
Retirar a análise de mérito em contas onde haja incidência da prescrição fere direitos individuais e coletivos. Até porque, jamais se pode ou se deve criar regra constitucional ou interpretativa (“novatio legis” ou “interpretatio”) de que as Câmaras Municipais em julgamento das Contas do Executivo, não podem deliberar sobre tais decisões, pelos simples fato de que como a atuação fiscalizatória da Corte de Contas prescreveu, essa mesma prescrição deve ser aplicada de forma automática e peremptória ao desempenho da ativíssima função julgadora política e definitiva do Poder Legislativo Municipal, sob pena de aniquilarmos e transformamos em letra morta a previsão constitucional do art. 31, §§ 1º e 2º da Constituição Federal – ou julgamento ficto, inobstante sejam essenciais e nobres as finalidades constitucionais dos Tribunais de Contas.
De igual modo, abster-se o Tribunal de contas de proferir julgamento de mérito nas contas dos administradores e responsáveis por bens e valores públicos da administração direta e indireta por conta de eventual prescrição na condenação ressarcitória ou sancionatória, retira um dos pilares fundamentais à sobrevivência e função constitucional desse órgão de controle que é o de avaliar, através de julgamento, o resultado da gestão e da governança pública.
O caminho para o julgamento de mérito das contas públicas pode ou não passar pelo dano injustificado ao erário ou pelo desfalque ou desvio de dinheiro público, nos casos em que a aplicação das técnicas de auditagem apresentam como um dos inúmeros resultados a confirmação de malversação de recursos. Porém, essas técnicas abrangem uma vasta gama de conhecimento gerado em função do avanço do controle externo exercido pelos tribunais de contas, conhecimentos a cada dia mais evoluídos pelo uso de expertises apuradas e tecnologias de ponta como a inteligência artificial, visando resposta eficiente e tempestiva às perspectivas da sociedade nas
avaliações de atos de gestão ilegítimo ou antieconômico, por princípios constitucionais da legalidade, legitimidade e responsabilidade que permitem às Cortes aferir se houve ou não a prática de uma gestão responsável, certificando o bom gestor com aprovação de contas e condenando mau gestor com reprovação aos olhos públicos, inclusive, como forma de alertar para as melhores direções nas escolhas em pleito eleitoral.
Encerrar um processo de análise nas contas de um gestor por ter ocorrido a prescrição ressarcitória ou indenizatória é permitir colaborar para que as filas dos hospitais
continuem se multiplicando; que a falta de remédios nas unidades básicas de saúde sejam um problema crônico; que os usuários do transporte coletivo sejam refém de um péssimo serviço apesar da tarifa cobrada; que a educação, mormente os grandes aportes de recursos destinados a sua melhoria, continuem formando brasileiros na sua educação básica e fundamental de forma precária, exatamente pela falta de avaliação das políticas públicas destinadas para esses fins, sendo que um dos atores responsáveis por esse papel foi dado pela Constituição aos Tribunais de Contas.
Ademais, em uma perspectiva do jurisdicionado, imaginemos a hipótese em que um determinado ordenador de despesa tenha recebido um repasse de 150 milhões de reais anuais para administrar determinado órgão público. Recebida as contas e havido a instrução do processo de forma regular, ou seja, sem prejuízo da ampla defesa e contraditório, ficou constatado que referido processo ficou paralisado por mais de cinco anos, pendentes de julgamento não obstante não ter havido qualquer mácula nas contas prestadas.
Desse modo, fere direito subjetivo a alegada “racionalização administrativa e economia processual” que se possa sustentar para qualquer tese que vise extinguir ou arquivar sem resolução de mérito o processo de contas. Isso porque tem o jurisdicionado o direito de obter junto ao órgão de controle externo e julgador de suas contas o atestado de bom gestor da coisa pública, o que se dá através do respectivo alvará de quitação. De igual modo fere o direito da sociedade quando essa omissão de não julgar acontece, haja vista que não permite a população conhecer e separar por processos próprios o bom do mau gestor.
Não bastasse processos em que incidem a prescrição ressarcitória uma vez paralisados sem julgamento de mérito configura verdadeiro “salvo conduto da impunidade” àqueles que por ato ímprobo desviaram recursos públicos, haja vista que, não havendo decisão sobre o mérito de suas contas, não há conhecimento e consequências na seara eleitoral, penal e administrativa.
A “racionalização administrativa e economia processual”, de que resulte arquivamento de processos de contas, sem resolução de mérito, não pode ser tratada à luz do instituto prescricional e sim albergada em estudos que levem em consideração os contornos da seletividade sob critérios de materialidade, risco e relevância para julgamento, institucionalizando normativos aos moldes de um Plano Anual de Fiscalização e Julgamento (PAFJ), desta forma estabelecido juízo de valor pelas Cortes de Contas, conforme as especificidades de seus processos de trabalho.
Portanto, o que baliza a formação, processamento e julgamento de um processo de contas não é a constatação de que há ou não o instituto da prescrição, mas efetivamente aquilo que a alta gestão da corte de Contas elegeu e selecionou dentre todas as unidades administrativas como aquelas a serem investigadas, segundo critérios técnicos aplicáveis ao sistema de controle externo.
Concluo, assim, afirmando que para salvaguardar as competências do controle externo que, sob perspectiva finalística, promovem e tutelam interesses da coletividade – não é possível estender ao regime jurídico de todos os Tribunais de Contas os efeitos de decisões judiciais que, circunscritas à lide, reconheceram balizas prescricionais para a atuação da Corte de Contas da União.
(1) TEMA 899: “É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”. (RE 636886, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO. DJe-157 DIVULG 23-06-2020 PUBLIC 24-06-2020)
(2) (CPC/2015) Art. 19. O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I – da existência, da inexistência ou do modo de ser de uma relação jurídica;
(3) Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: (…) 3º As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo.
(4) Art 71, inciso VIII, CF/88
(5) Artigo 45, inciso IV, §2° da LOTCM/PA
Luis Daniel Lavareda Reis Junior – Conselheiro Titular do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Pará (TCM-PA).