A questão orçamentária é central na democracia. Está na origem do moderno constitucionalismo. Decidir como serão aplicados pelo governo os recursos arrecadados dos cidadãos mediante a cobrança de impostos é uma das principais atribuições dos representantes eleitos do povo.
Assim, o debate sobre as leis orçamentárias não pode ser reduzido a uma questão tecnocrática, de alcance limitado a poucos especialistas. Deve ser objeto de intensa discussão e articulação dos mais diversos segmentos da sociedade. Na medida do possível, o orçamento deve buscar refletir as prioridades eleitas pela maioria dos cidadãos, de modo a que o país, os estados e os municípios alcancem seus objetivos de curto, médio e longo prazos na execução de políticas públicas.
Com essa visão é que foram elaboradas as normas constitucionais sobre orçamento e finanças públicas. Nelas se consagram importantes princípios como o da legalidade (nenhuma despesa pode ser feita sem prévia autorização legislativa), da unidade (somente uma lei orçamentária para cada ente), da discriminação (vedando as dotações genéricas), da transparência etc. Em artigos anteriores, tive a oportunidade de detalhá-los.
Infelizmente, nos últimos anos temos vivenciado uma verdadeira desconstrução desses princípios, tornando caótico o processo de elaboração e, principalmente, de inexecução das leis orçamentárias.
O fenômeno é observado em todas as esferas da Federação e de múltiplas maneiras. Desde as mais singelas, em que não se observam os prazos de tramitação e os exercícios financeiros iniciam sem orçamento aprovado, até as mais elaboradas que envolvem a aprovação de emendas constitucionais criando regras casuísticas, que terminam por desfigurar o sistema orçamentário da Carta de 1988 e inviabilizar um efetivo planejamento governamental.
De junho de 2019 até hoje, o corpo permanente da Constituição orçamentária foi alterado pelas emendas 100, 102, 103, 105, 106, 108 e 109, que modificaram a redação de mais de 100 dispositivos. Outras tantas mudanças alcançaram as disposições transitórias, sendo a mais recente a emenda 113, que alterou o regime de pagamento dos precatórios, tema que, talvez ainda esse ano, sofra novas modificações atualmente em exame pela Câmara dos Deputados.
Anote-se que cada mutação constitucional produz um efeito cascata de adaptação em normas, manuais e regulamentos dos órgãos responsáveis pela elaboração, execução e fiscalização contábil, financeira e orçamentária. É natural concluir que a instabilidade de regras não favorece o bom planejamento e a dimensão e velocidade de tais alterações impõem elevado grau de dificuldade a gestores e servidores.
Entre as mudanças mais deletérias, destaca-se a instituição, a partir das diretrizes orçamentárias de 2021, das oficialmente denominadas emendas de relator, mais corretamente conhecidas como “orçamento secreto”, em frontal violação aos princípios do planejamento, da transparência e da equidade, cujo volume multibilionário provoca indignação diante da escassez de recursos para atividades essenciais ao desenvolvimento nacional como, por exemplo, a realização do Censo Demográfico.
Ademais, principalmente no âmbito municipal, mas também em alguns estados, há casas legislativas que renunciam na prática ao seu principal mister, quando concedem aos chefes do executivo autorizações prévias para remanejar créditos orçamentários suplementares de uma dotação para outra em percentuais por vezes superiores a trinta por cento do orçamento global. Considerando que a maior parte dos recursos é reservada a despesas com pessoal e previdenciárias, tais índices equivalem a conceder ao executivo poder decisório quase absoluto sobre a definição dos investimentos a serem feitos.
Outra tristeza é, ao examinar os balanços dos exercícios encerrados, constatar que inúmeros projetos e atividades relevantes, mesmo contemplados com dotações orçamentárias, foram abandonados, esquecidos e negligenciados, não alcançando dez por cento da realização prevista. Isso tem ocorrido em áreas estratégicas como a proteção ambiental e a pesquisa científica.
E cabe lembrar as pedaladas fiscais que, praticadas com a complacência de muitos, camuflaram problemas, distorceram resultados, agravaram crises e adiaram soluções.
Em síntese, após tantos remendos e retalhos, hoje temos orçamentos em frangalhos. É hora de recuperar o debate orçamentário como ápice da construção política de uma sociedade democrática.
Luiz Henrique Lima é Auditor Substituto de Conselheiro do TCE-MT