O jornal O Globo publicou nesta quinta-feira (14/02) artigo assinado pelo conselheiro do TCE-RJ Aloysio Neves, em conjunto com o procurador do Estado Rodrigo Távora, intitulado “Porta aberta para a folia fiscal”, em que alerta para o cenário de “caos administrativo” existente em grande parte dos municípios brasileiros marcados pela ausência de planejamento financeiro e descompromisso com o equilíbrio fiscal.
Para reverter esse quadro, Aloysio Neves e Rodrigo Távora defendem a retomada de uma proposta, contida originalmente na Lei de Responsabilidade Fiscal, que veda a realização de gastos públicos sem que haja disponibilidade financeira correspondente em caixa. “Só assim se evitará que os prefeitos recém-eleitos iniciem uma folia fiscal que comprometerá não só o equilíbrio orçamentário de sua gestão, mas, sobretudo, o planejamento e a austeridade financeira de futuros gestores e a própria qualidade dos serviços públicos prestados”, dizem os autores do texto.
Leia abaixo a íntegra do artigo:
Porta aberta para a folia fiscal
Aloysio Neves e Rodrigo Távora*
Com a posse de novos prefeitos ocorrida em janeiro, descortinou-se um grave cenário de desorganização administrativa em grande parte dos municípios brasileiros. Dentre as principais características desse caos administrativo, sobreleva-se a ausência de planejamento financeiro que permita a gestão austera por parte dos prefeitos recém-eleitos. Em casos extremos, observa-se o comprometimento da própria viabilidade de pagamento dos salários dos servidores e a prestação de serviços imprescindíveis, tais como os de saúde e de coleta de lixo.
A legislação nacional já avançou significativamente de forma a coibir abusos fiscais no último ano de mandato, permitindo-se a desejada continuidade dos serviços públicos. Emblemática nesse sentido é a Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe a contração de despesas que não possam ser cumpridas integralmente dentro dos dois últimos quadrimestres do mandato.
As finanças públicas devem de fato receber tratamento especial no último ano de mandato, de forma a se evitar, de um lado, a irracionalidade dos gastos públicos motivada por interesses estritamente eleitorais, orientados apenas pela busca de vitória nas urnas, e, de outro, possibilitar a desejada continuidade de uma política de austeridade financeira.
Essa medida, no entanto, embora necessária, não se revela suficiente para coibir abusos na gestão fiscal dos municípios. As impropriedades fiscais observadas no último ano usualmente refletem apenas o desfecho de uma administração irresponsável desde o seu primeiro dia. O controle fiscal deve ser efetivado não somente no primeiro ano de gestão, mas de forma contínua em todos os exercícios financeiros.
Essa era inclusive a proposta originária do anteprojeto que resultou na aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Nele havia regra específica que limitava os chamados “restos a pagar” à efetiva existência de disponibilidade de caixa, como forma de não haver transferência de despesa de um exercício para o outro. Essa regra, contudo, foi modificada pelo Congresso Nacional e acabou sendo definitivamente suprimida do texto final aprovado em razão de veto aposto pelo presidente da República, permitindo que os administradores públicos assumam inúmeras obrigações desde o primeiro dia de gestão sem que exista disponibilidade financeira para saldá-las.
Essa prática provoca um total descontrole das finanças públicas, gerando déficits imoderados e reiterados cujos reflexos serão suportados pelos futuros gestores. Inibe também um controle mais eficiente por parte dos órgãos responsáveis pela fiscalização contábil, financeira e orçamentária, notadamente o que é atribuído constitucionalmente aos Tribunais de Contas.
As contas prestadas anualmente pelos administradores públicos, bem como os inúmeros relatórios fiscais encaminhados aos Tribunais de Contas, retratam em inúmeros casos uma realidade marcada pela ausência de compromisso com o equilíbrio fiscal. Os Tribunais de Contas, no entanto, embora reiteradamente sinalizem a necessidade de adoção de medidas com o objetivo de eliminação do déficit público ao longo do processo de acompanhamento da execução orçamentária, não dispõem de mecanismos que lhes permitam coibir prontamente o estabelecimento de obrigações sem lastro financeiro nos primeiros anos de mandato dos gestores públicos.
O reinício da atividade parlamentar que se dá agora no mês de fevereiro é o momento ideal para que esse modelo seja revisto, retomando-se a proposta originária contida na Lei de Responsabilidade Fiscal, de forma a se vedar a realização de gastos públicos sem que exista a concomitante disponibilidade financeira. Só assim se evitará que os prefeitos recém-eleitos iniciem uma folia fiscal que comprometerá não só o equilíbrio orçamentário de sua gestão, mas, sobretudo, o planejamento e a austeridade financeira de futuros gestores e a própria qualidade dos serviços públicos prestados.
Aloysio Neves é conselheiro do TCE-RJ e Rodrigo Távora é procurador do Estado.