Como o nosso Tribunal de Contas se compara ao de outros países?

Por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis*

Há mais de dois séculos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração (art. 15 DDHC). Assim que, desde o início da República moderna, a tomada de contas é rotina umbilicalmente a ela ligada. A cronologia da República brasileira ilustra o mesmo parentesco: em 15/11/1889 é proclamada a República (Decreto 1), em 7/11/1890 é criado o Tribunal de Contas (Decreto 966-A) e em 24/02/1891 é promulgada a primeira Constituição republicana, prevendo o Tribunal de Contas (art. 89 da CF/1891).

Atualmente, os órgãos incumbidos de apurar o regular e eficiente emprego de recursos públicos são chamados “entidades de fiscalização superior” e organizam-se sob as mais diversas formas jurídicas e conjunto de atribuições. Há estudo que os subdividem em seis diferentes espécies, sendo o Tribunal de Contas apenas uma dessas variações. Enfim, há tantas entidades de fiscalização superior no mundo quanto Constituições que as contemplem, nenhuma sendo exatamente igual à outra.

Esperando não supersimplicar a questão, dividimos esses organismos entre aqueles que têm função judicante e aqueles que têm função administrativa. Os primeiros geralmente emitem decisões que contam com poder vinculante e executivo e geralmente são chamados Tribunais de Contas. Os segundos geralmente confiam no poder persuasivo de suas decisões e geralmente são chamados Controladorias. Uma entidade paradigma dos primeiros é a “Cour des Comptes” francesa. Uma entidade paradigma dos segundos é a “Comptroller of the Exchequer” do Reino Unido (atualmente “National Audit Office”).

No entanto, mesmo as Controladorias, dotadas de atribuições simplificadas quando comparadas às dos Tribunais de Contas, acabam por consumir significativos recursos do aparato estatal. É o caso, por exemplo, do “Government Accountability Office”, entidade de fiscalização superior norte-americana de caráter administrativo, país que prima pela modicidade de sua estrutura pública. Em breve comparação, temos:

EUA – “Government Accountability Office”

Orçamento do GAO (2017): R$ 1,8 bilhões (U$ 567,8 milhões)

Quadro do GAO: 3100 servidores

Orçamento fiscalizado (2017): R$ 11,7 trilhões (U$ 3,65 trilhões)

BRASIL – Tribunal de Contas da União

Orçamento do TCU (2017): R$ 2 bilhões

Quadro do TCU: 2687 servidores

Orçamento fiscalizado (2017): R$ 3,5 trilhões

Vê-se que embora similares em termos absolutos, quando comparados aos orçamentos que fiscalizam, manifesta-se certa superlatividade do TCU em relação ao GAO, reflexo da importância que a Constituição brasileira deposita nele. Determinar indisponibilidade de bens, afastar administradores, paralisar licitações e obras, negar aposentadorias ou admissões e propor a rejeição das contas do Presidente da República são atos distantes da realidade da Controladoria norte-americana.

Para ver justiça no manejo de suas excepcionais prerrogativas, o Tribunal de Contas opera à similaridade dos Tribunais Judiciais, com garantias aos magistrados (CF/88 art. 73, §§s 3º e 4º), presença do Ministério Público (art. 130) e submissão ao devido processo legal (art. 73 caput c/c art. 96, I, “a”). Em Portugal, o Tribunal de Contas compõe formalmente o Poder Judiciário (art. 209, 1, “a” Constituição portuguesa) e na França, embora se posicione entre o Parlamento e o Governo (art. 47-2 Constituição francesa), liga-se à autoridade judicial (art. 64 e s/s). A despeito dessas garantias, há vicissitude que flagela, sobretudo, a versão brasileira dos Tribunais de Contas: a sua propensão a atritar-se com os poderes constituídos. No Brasil, o Tribunal de Contas nem integra formalmente nenhum dos poderes, nem a eles se equipara. Antes, ocupa posição especialmente vulnerável quando instalado o conflito.

São várias as propostas para reformar o Tribunal de Contas (PECs 126/1995, 556/1997, 123/1999, 227/2000, 397/2001, 209/2003, 222/2003, 229/2004, 427/2005, 531/2006, 15/2007(S), 28/2007, 30/2007(S), 75/2007, 146/2007, 157/2007, 316/2008, 42/2009(S), 143/2012, 235/2012, 256/2013, 329/2013, 378/2014, 474/2014, 180/2015 e 276/2016), algumas encaminhando a sua extinção (PECs 19/1999, 36/1999(S), 193/2000, 329/2001, 90/2007(S) e 148/2015). Recentemente o Senado Federal utilizou o projeto de reforma da Lei de Licitações para introduzir – nos últimos dias de deliberações – alteração que solapa a prerrogativa que os Tribunais de Contas têm de paralisar licitações (Emenda 132-Plenário ao PLS 559/2013), insinuando até mesmo a responsabilização do magistrado (art. 123, §3º). Possivelmente os Tribunais de Contas encontrem salvaguarda no referendo que gozam junto à sociedade, uma vez que são ligados à ideia de agravar a cobrança sobre os administradores públicos. Recente pesquisa IBOPE/CNI apurou que cerca de 90% dos entrevistados que conheciam o Tribunal de Contas viam a entidade como importante no combate à corrupção e quase 95% entendiam que a instituição deveria continuar a existir.

No âmbito dos Estados, reedita-se o conflito. Na Paraíba e no Rio de Janeiro houve iniciativas para dividir as competências de seus Tribunais de Contas Estaduais, formando Conselhos de Contas de Municípios. Goiás, de outro lado, já pretendeu extinguir o seu Tribunal de Contas dos Municípios. O caso do Ceará foi o mais recente, com a extinção do TCM-CE sendo suspensa liminarmente pelo STF (ADI 5638, Min. Rel. Celso de Mello). Ao instalar processo legislativo para projetos de seu interesse, o Tribunal de Contas às vezes se vê surpreendido. Em Santa Catarina, a Assembleia Legislativa aproveitou um projeto de Lei iniciado pelo TCE-SC para nele introduzir uma série de alterações na Corte (Lei SC 666/2015), o que instou a intervenção do STF (ADI 5453, Min. Rel. Marco Aurélio). Algumas Cortes vacilam ao deflagrar processo legislativo temendo desfecho desfavorável à missão institucional.

O Judiciário também já pôs em dúvida as competências dos Tribunais de Contas. Embora o inciso III do art. 71 da CF/88 encarregue o Tribunal de Contas de apreciar a legalidade dos atos de pessoal no serviço público, o TJRS já contestou a competência do TCE-RS de apreciar a legalidade das admissões (MS 70023692056, TJRS, Des. Rel. José Aquino Flores de Camargo e MS 70023771363, TJRS, Des. Rel. Ana Maria Nedel Scalzilli) e o TJSP, a competência do TCE-SP de apreciar a legalidade das aposentadorias (APL 1007788-76.2016.8.26.0361 Des. Rel. Carlos Eduardo Pachi).

O próprio Supremo Tribunal Federal, em seu papel de guardião da Constituição e, com isso, dos Tribunais de Contas, já limitou sensivelmente suas atribuições em pelo menos duas oportunidades: na apreciação do MS 25.888-MC/DF (Min. Rel. Gilmar Mendes), em que a capacidade do TCU de fiscalizar licitações da Petrobrás foi comprometida, e na apreciação do RE 848826/DF (Min. Rel. Ac. Ricardo Lewandowski) que, em conjunto com o RE 729744/MG (Min. Rel. Gilmar Mendes), afastou parte dos orçamentos municipais da fiscalização dos Tribunais de Contas (ainda pendentes de publicação do acórdão).

Enfim, o Tribunal de Contas brasileiro, quando comparado aos de outros países, é de tamanho similar, poderes similares, mas vulnerabilidade maior, em virtude de sua delicada inserção no condomínio estatal. Trata-se de órgão judicante fora do Poder Judiciário e órgão técnico auxiliar do Poder Legislativo, que desempenha papel que, embora reconhecido e aprovado pela sociedade, não conta com a simpatia dos representantes.

*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é conselheiro-substituto do TCE-SP