Shakespeare, o bardo, corrupção e demagogia
Inaldo da Paixão Santos Araújo – Mestre em Contabilidade. Conselheiro-corregedor do Tribunal de Contas do Estado da Bahia, professor, escritor.
Certa feita, ouvi, em uma comédia teatral, a afirmação hilária de que, para atrair a atenção de quem ouve ou lê alguma coisa, bastaria, a quem fala ou escreve, atribuir a autoria do que foi dito ou escrito a William Shakespeare. Contudo não intitulo este artigo com o nome do famoso escritor inglês com esse propósito.
Na história e em discussões literárias, volta e meia se questiona se foi ou não o “Bardo do Avon” o verdadeiro autor de algumas das mais famosas tragédias dramatúrgicas do mundo (Romeu e Julieta, Macbeth, Rei Lear e Hamlet). Alguns insistem que a autoria de determinadas peças atribuídas a Shakespeare, na realidade, seriam do poeta lírico Edward de Vere, o conde de Oxford. Verdade, mentira […] como saber?
Como para mim Shakespeare será sempre Shakespeare, e mais importante do que o autor é a sua obra e o seu legado, releio “Hamlet”, suas agruras sobre as ameias do castelo de Elsinor, na Dinamarca, viajo e me inspiro. Gosto dessa obra, em especial, não só pelo conflito entre “ser ou não ser”, entre razão e emoção.
O que me atrai em “Hamlet” (frise-se, a obra) é a máxima: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, proferida pelo jovem príncipe, filho do falecido rei, personagem que dá nome à peça, pouco tempo antes de saber que seu pai tinha sido envenenado pelo próprio irmão, que assim usurpou não somente o reino como também desposou a rainha. Ou seja, seu tio, e agora padrasto, Claudius, era o assassino covarde do seu progenitor.
Se a podridão descrita por Shakespeare refere-se às traições, aos ardis, às aleivosias, aos assassinatos e às conspirações palacianas que ocorriam naquele país nórdico, em torno do poder, hoje, e há muito tempo, os “malfeitos” gravitam não somente em torno, mas em todas as esferas e níveis de poder e cortes de um outro reino não “tão, tão” distante e que poderia ser rotulado simplesmente como corrupção.
Não posso afirmar, por absoluta falta de dados confiáveis, se hoje em dia há mais ou menos corrupção do que antanho; contudo a certeza que tenho é a de que essa praga, atualmente, é muito mais exposta, divulgada e combatida.
É inquestionável o papel da imprensa brasileira nesse processo, mas também não se pode olvidar que muitas das descobertas de fraudes e desmandos que são apontados possuem as suas gêneses em decorrência de trabalhos auditoriais realizados em observância a padrões profissionais no âmbito dos sistemas de controle interno (controladorias e auditorias gerais) e de controle externo (Tribunais de Contas), que, todavia, precisam ser fortalecidos para serem mais atuantes e independentes.
E essa ação midiática, aclamada positivamente pela sociedade, ocorre, justamente, graças ao avanço da democracia e do fortalecimento das instituições no Brasil.
Ao assim pensar, não concordo com a afirmação de uma parlamentar federal cujo nome, por ética, prefiro preservar de que o “excesso de denuncismo da imprensa brasileira põe em risco a liberdade democrática”.
Imaginar e declarar que a democracia está ameaçada por isso é um engano ou é querer enganar. Em minha modesta opinião de auditor, o que realmente ameaça a democracia é a traição aos verdadeiros valores das “primeiras lutas”.
Sinceramente, sei que não deveria dar importância ao que não é importante e a quem não tem importância, mas descrevo esse acontecido para contar e também para não esquecer o que ouvi e o que vivi, até mesmo porque esse fato me arreliou.
Meu dileto leitor poderia perguntar se vai valer a pena escrever sobre isso. Respondo: sempre vale. Pois, inspirado em Fernando Pessoa, sei que quem quer passar “além do Bojador tem de passar além da dor”.
Além disso, sempre é bom variar os meus desabafos – por mim chamados de crônicas -, pois acredito em Rubem Alves quando afirma, no livro “A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir”, que as “crônicas, para serem gostosas, devem refletir a imensa variedade da vida”.
Mas, voltando ao cerne desse escrito, é claro que, como já registrei no artigo “Informações e credibilidade”, um bom jornalismo não pode e não deve divulgar notícias baseadas em “fatos” ou “acontecimentos” que não foram devidamente averiguados. Portanto, na ocorrência de excessos, esses devem ser prontamente repelidos e questionados judicialmente, pois se configura como um dos fundamentos do mundo jurídico e republicano o fato de que ninguém pode ser acusado sem prova.
Nada obstante, também entendo que todo servidor público – de qualquer nível – está sujeito a rigorosos preceitos éticos e sabe, ou pelo menos deveria saber, que a “ele não basta ser apenas honesto, mas precisa demonstrar que é efetivamente honesto”. E registre-se, por importante, que essa frase não foi inspirada em Shakespeare, mas, sim, em Suetônio, quando no livro “A vida dos doze Césares, São Paulo: Ediouro, 2002, p. 73”, relata que:
“Quando foi chamado a servir como testemunha contra Público Clódio, acusado de sacrilégio por ser amante de sua mulher Pompéia, respondeu que de nada sabia, apesar de sua mãe Aurélia e sua irmã Júlia terem dito toda a verdade aos mesmos juízes. Perguntaram-lhe, então, por que havia repudiado a mulher. Ele respondeu: ‘Porque os meus devem estar isentos não só do crime, mas, também, da suspeita'”
Contudo querer simplesmente punir ou imputar a responsabilidade pela divulgação de um “malfeito” ou de uma notícia ruim à imprensa ou mesmo a um auditor é agir da mesma forma que um Romeu que, ao receber uma carta informando que a sua Julieta o trai, simplesmente rasga a missiva ou desqualifica o carteiro.
É, caro e raro leitor, se Shakespeare ou mesmo o conde de Oxford (se assim um dia provarem) vivesse nos dias atuais, teria uma carrada de motes inspiradores para descrever, em suas tragédias dramatúrgicas, principalmente enquanto existirem “demagogos” – para os quais a prática diverge, em muito, do discurso -, que acreditam que, pela impostação da voz, conseguirão intimidar ou convencer, assim como enquanto existirem parvos e incautos que continuem a crer nas empulhações deles. Há sempre aqueles que acreditam em mitos e em falsos pregadores. Isso tudo porque não se pode esquecer de que, como disse William Shakespeare, até mesmo “o diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”.
Por fim, e por último, se o homem é um mosaico de contradições e, como “Alice”, sonha em um país das maravilhas ao som de “fados” lisboetas, a ética e a moral atuam como moldura intransponível para não deixar que seus fragmentos de irracionalidades prevaleçam. Acredito que não preciso dizer que essa frase não é de Shakespeare.