Supremo Acerto de Contas (Parte 5)

Abaixo, o capítulo 5 (penúltimo) do ensaio “Supremo Acerto de Contas: a hermenêutica constitucional que consolida os Tribunais de Contas como guardiões da República”.

PARA NÃO DIZER QUE NÃO SE FALOU EM DESAFIOS


Malgrado o dever de celebrar essa profícua construção jurisprudencial do STF, para não se dizer que aqui não se tratou de aspectos que demandam críticas e reflexão sobre uma desejada mutação constitucional, pela via interpretativa, do próprio STF, é forçoso consignar que em algumas questões pontuais, a jurisprudência poderia ter seguido a mesma trilha dos posicionamentos históricos que conferiram efetividade máxima ao poder fiscalizador dos Tribunais de Contas, a exemplo da breve amostra aqui já ressaltada neste ensaio.


A primeira diz respeito à competência para julgamento das contas de gestão de prefeitos ordenadores de despesas, à luz do artigo 71, I e II, e 75 da Constituição, combinado com o disposto no artigo 1º, I, “g”, da Lei da Ficha Limpa (LC 64/90). A lei estabelece que se o Chefe do Executivo decidir ser ordenador de despesas, ele terá suas contas julgadas pelo Tribunal de Contas, nos termos do artigo 71, II, da Lei Maior, incidindo, nesse aspecto, em potencial, as regras de inelegibilidade. Nesse caso, o Prefeito se submeteria a um duplo julgamento: 1) suas contas de governo seriam julgadas pelo Legislativo, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas (artigo 71, I, da CF); e 2) suas contas de gestão seriam julgadas pelo Tribunal de Contas (artigo 71, II, da CF).


O STF, ainda em 2012, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 29 e 30, considerou constitucional o referido dispositivo da Lei da Ficha Limpa. No entanto, em 2016, julgando repercussão geral no RE 848.826, o STF, por maioria de um voto, firmou a tese de que, para fins de elegibilidade, o prefeito, ainda que assuma a função (facultativa, diga-se) de ordenador de despesas, terá essas contas julgadas pelo Legislativo, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio.


Embora respeitável, a tese aprovada pelo STF mitiga sobremaneira a atuação dos Tribunais de Contas, na medida em que, ao não compreender a natureza dual das contas – “governo” x “gestão” – transforma em julgamento político, pelo Legislativo, aquilo que deveria ser objeto de julgamento pelo órgão técnico do controle externo, os Tribunais de Contas. Além do que, essa decisão aumenta o risco de esvaziamento das competências para imputar débitos, aplicar sanções, conceder medidas cautelares em desfavor daquele chefe de executivo que, por vontade própria, decidiu centralizar a gestão e assumir o papel de ordenador de despesas. Oxalá o decantar do tempo propicie uma nova mutação interpretativa do Supremo, desta vez restaurando o caminho da máxima efetividade do controle nesse aspecto.


Já por meio da ADI 4776, em que estava em julgamento a aplicação do modelo federativo dos Tribunais de Contas – quanto à sua composição – ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo, em razão das peculiaridades históricas deste TCM, o STF acabou abrindo uma exceção à jurisprudência cristalizada, admitindo, por exemplo, que o seu órgão decisório máximo, o Pleno, continuasse sendo composto por apenas cinco Conselheiros, sem a obrigação de assegurar assentos ao auditor (conselheiro substituto) e ao membro do Ministério Público de Contas, o que acaba fragilizando o caráter multidisciplinar da função de julgamemto e o próprio princípio federativo.
Um último aspecto na seara dos desafios jurisprudenciais é aquele atinente à Súmula 347 do STF, que confere aos Tribunais de Contas a competência para “apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos do Poder Público”. Adotada ainda sob a égide da Constituição de 1946, a tese sumular seguiu sendo ratificada pelo STF, até que, em decisões monocráticas, alguns membros começaram a lançar dúvidas quanto à sua vigência, após a CF de 1988. Conquanto ainda não tenha havido uma inflexão definitiva quanto à vigência formal da referida Súmula, até pelas peculiaridades dos casos concretos examinados, trata-se de uma outra relevante questão que, se consumada a mudança, pode vir a fragilizar a efetividade do controle externo, à medida em que, no limite, ainda que o órgão de controle se depare com atos de gestão manifestamente inconstitucionais, no curso das auditorias, não poderá afastá-los, no caso concreto.


PS.: Registre-se que após a publicação desse ensaio, o STF tomou duas decisões emblemáticas para o fortalecimento dos Tribunais de Contas. Por meio da ADI 6655, assinalou que os cargos que compõem a estrutura finalística da auditoria desses Tribunais, incluindo os de coordenação, devem ser ocupados por servidores concursados da carreira de controle externo. Noutras ADIs, a exemplo da 6946, o STF consagrou a simetria do regime remuneratório dos Ministros e Conselheiros Substitutos com os membros equivalentes do Judiciário.

Valdecir Pascoal – Conselheiro do TCE-PE